Diário do cronista digital

Hoje, bem cedo, eu me sentei diante de um atendente da Previdência Social e assisti ao filme da minha vida de trabalhador de carteira assinada. Um longa-metragem comprido, que teria completado 30 anos no dia 1° de janeiro deste 2016.

Um filme com muitas cenas inesquecíveis, e algumas poucas que gostaria de esquecer.

Lembrei o dia em que subi com meus olhos de andorinha molhada de chuva as escadarias da finada “Tribuna da Imprensa”, na Rua do Lavradio, na mesma Lapa carioca que, ultimamente, me convoca pela música e não mais pelo jornalismo. Faz 30 anos.

Hoje, diante do atendente da Previdência, gerei a minha primeira GPS, e aprendi que essas três letrinhas reunidas não são apenas sigla de “Global Positioning System”. Descobri que, numa rotina mais simples e desornada, como a de agora, também significam Guia da Previdência Social.

Hoje, fiz isso porque algo haveria de nascer nove meses depois da minha última contribuição como trabalhador de carteira assinada – e, por causa do meu impulso matinal, eu me dei conta de que cada um de nós, brasileiros, corresponde a um NIT. E descobri o meu NIT. E ainda descobri que NIT quer dizer Número de Identificação do Trabalhador. E descobri também que o tal NIT, na sua brevidade fonética, contém quase toda a história da vida da gente.

Hoje, descobri que todos somos um número – nós, brasileiros em idade ativa, que, em algum momento, já contribuímos pra esta engrenagem chamada Previdência Social, agora ameaçada de desmonte. Somos todos um número.

Hoje, acordei muito cedo, como nos tempos de carteira assinada, quando construí minha existência como NIT, e, antes que o meu impulso me levasse ao posto do INSS, chorei um pouco depois de ler numa rede social a confissão de medo da minha filha mais velha com o estupro coletivo cometido por mais de 30 energúmenos contra uma menina de 16 anos, idade da irmã dela.

E chorei mais um pouco ao lembrar que, diferentemente da irmã mais velha, de pé àquela hora pra divulgar numa rede social o seu sofrimento com a notícia do estupro, minha filha caçula ainda dormia, na inocência dos seus 16 anos, com seu jovem corpo já de moça e sua compleição de ainda criança, sem saber, talvez, da imensa barbárie cometida contra uma garota da idade dela.

Hoje, eu sofri por esse crime e por todos os outros que ocorrem de segunda-feira a domingo contra mulheres, crianças e demais seres do mundo. E me indignei novamente ao tentar adivinhar a tristeza e o pavor que esse inominável acontecido pode elaborar pra sempre no coração das minhas filhas e nos corações de tantas filhas de tantas pessoas.

Hoje, lembrei que uma amiga de adolescência foi estuprada. E me lembrei também de outros abusos sofridos por gente que vou amar pra sempre. E me entristeci com essas lembranças.

Hoje, ouvi duas vezes “Bachianas brasileiras n° 4”, de Heitor Villa-Lobos, com sua beleza e delicadeza que não têm fim. Em seguida, ouvi mais uma vez a abertura impactante de “Tristão e Isolda”, a ópera do alemão Richard Wagner, baseada na lenda medieval cuja emoção que desperta nos enamorados o tempo jamais será capaz de impedir. Jamais será.

Hoje, eu me lembrei de todos os amores que perdi na vida. E ainda lembrei amores que, idiota, abri mão de viver. Lamentei por todos, cada um deles.

Hoje, eu me lembrei da garotinha de cachos reprimidos em tranças da quarta série primária da Escola Municipal Souza e Melo, causadora, sem saber, do meu primeiro sofrimento de amor, talvez aos 9 anos de idade. Nunca soube o nome dela. Jamais saberei. Talvez se chamasse Adalgisa e tenha ficado perdida pra sempre de mim numa esquina da memória.

Hoje, pedalei dois quilômetros ladeira acima, enquanto cantava, ofegante, “Beautiful boy”, de John Lennon. “Close your eyes/Have no fear/The monster’s gone/He’s on the run and your daddy’s here”…

Pedalei, enquanto cantava e pensava nos meus três filhos e no mundo em que, um dia, eles vão ficar sozinhos, sem mim.

Hoje, reli o trecho de “O amor nos tempos do cólera” no qual Juvenal Urbino e Fermina Daza se desentendem seriamente por causa da acusação dele de que ela havia se esquecido de repor o sabonete no banheiro.

Hoje, entendi novamente as razões de Juvenal Urbino, quando, depois de um mês de noites mal dormidas e culpas remoídas num sofá do escritório, com saudade do quente e do macio do corpo da mulher, ele resolve se deitar ao lado dela no meio da madrugada e diz, rendido pelo banzo: “Tinha sabonete, sim.” E ela o aceita.

Hoje, mais uma vez, visitei com compreensão as razões de Fermina Daza em sua franca sensação da ofensa provocada pela acusação comezinha e egoísta de Juvenal Urbino.

Hoje, uma vez mais, concluí, que, como na história de Bentinho e Capitu, e do suposto adultério em “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, jamais vou saber quem estava certo na tocante história de Gabriel García Márquez. Havia sabonete? Houve traição?

Hoje, como na canção “Gabriela”, de Tom Jobim, “pensei, repensei tanta coisa”. Hoje, como na primeira palavra que salta de “Grande sertão: veredas”, de João Guimarães Rosa, eu me senti “nonada”.

Hoje, repeti pra mim mesmo que os amigos são tesouros recebidos do insondável ao longo da nossa existência – e que devemos sempre zelar pela proximidade deles. Sempre. Sempre.

Hoje, senti vontade de voltar a Ouricuri e a Altamira; a Dublin e a Berlim; a Japeri e a Weggis; a Souza e a Zurique. Rever a garçonete portuguesinha do Wellness Hotel Rössli. Atravessar o Portão de Brandemburgo. Beber no Temple Bar às seis da tarde no verão. Reconhecer a nave da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Japeri.

Fechei os olhos, hoje, e me vi na oficina de marcenaria e carpintaria do avô Anacleto, construindo com ele brinquedos bons de brincar e ouvindo dele coisas boas de ouvir.

Hoje, tive vontade de viajar no tempo e chegar à porta da salinha do MPA, em Morro Agudo, e pedir à minha madrinha e professora Denaltina:

– Dindinha, posso entrar? Preciso reaprender o esquecido, melhorar minha média da primeira série, reencontrar a garotinha de cachos reprimidos por tranças, que talvez fosse Adalgisa, e tentar refazer o mundo pra que minhas filhas e meu filho não sofram por nada. Por nada, dindinha. E gostaria de recomeçar daqui, deste ponto.

E ela permitiria, e eu entraria, e meu cachorro Ringo me esperaria lá fora com uma folha de amendoeira entre os dentes pra me entregar depois, e eu viveria tudo de novo, consertaria algo aqui, algo ali, sem retirar nada do curso refeito do tempo, e viveria as surpresas do tempo outra vez.

Hoje, eu me sentei diante de um atendente da Previdência Social. Hoje, eu me dei conta de que todos somos um número. Hoje, chorei um pouco depois de ler numa rede social a confissão de medo da minha filha mais velha ao saber do estupro coletivo cometido por 30 e tantos calhordas contra uma menina de 16 anos, idade da irmã dela.

Hoje, lembrei todos os meus amores e percebi que há dias impossíveis de caber num só.

13 comentários sobre “Diário do cronista digital

  1. Na minha infância os homens eram mais evoluídos, e raramente as mulheres eram “curradas”, casos como o da Aida Curi e pessoas como o Febrônio eram raros.
    Com o passar dos anos tudo evoluiu menos mas a cabeça humana, que ao meu ver, está involuindo cada vez mais, por isso que sempre digo que essa espécie humana chegou ao fim e precisa acabar para surgir uma nova espécie mais solidária e humanitária.

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  2. A estória do escritor Gabriel Garcia Marques trata da doença física “cólera”. Nos dias de hoje o nosso país convive com uma “doença mental” com o mesmo nome, porém mais difícil de combater. Entendo que sua angústia com relação às filhas, diante deste mundo hostil, deve ser partilhado por todos nós que temos filhas, netas e bisnetas. Unamo-nos para pedir correção exemplar a esses bandidos que ousaram destruir os sonhos de uma adolescente.

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