Sobre a liberdade (ou carta ao meu pequeno amigo)

Eu tenho um pequeno amigo chamado Bernardo. É meu vizinho. Bernardo é um garoto miúdo, mal fez 12 anos, mas seu coração é grande, bem grande.

Outro dia, o meu amigo brincava com a criançada perto de casa quando viu uma mamãe gambá, que carregava um filhote nas costas e era seguida de perto por outro. A mamãe gambá se assustou com a algazarra dos meninos da rua e correu, deixando pra trás o filhotinho indefeso, que caminhava lento atrás dela.

Um dos garotos, encantado, cismou de pegar o filhote desgarrado, apesar do alerta do Bernardo:

– Não faz isso! Ela pode rejeitar depois!

Bernardo se encheu de atitude, tomou a frente da situação, recolheu o filhotinho com cuidado e o levou pra um canto, onde a mãe poderia vê-lo e, quem sabe, buscá-lo mais tarde. Mas não adiantou.

No  fim da noite, voltando pra casa com os pais depois de um passeio, o meu pequeno amigo relatou sua aventura e pediu que o deixassem ver se a mamãe gambá tinha resgatado o filhote. Não tinha. O bebezinho continuava lá, na sua existência indefesa e tão frágil, ainda de olhos fechados.

Bernardo implorou:

– Deixa eu levar ele pra casa, por favor, por favor, ele vai morrer, por favor, por favor!…

Tanto insistiu que comoveu a mãe e o pai. Faz uns 15 dias, ou quase. Desde então, Flor, nome que o meu amigo deu ao gambazinho, ou Xineném, apelido escolhido pela mãe, dorme no quarto dele, dentro de uma gaiola, de onde só sai, de três em três horas, pra ser alimentado pelo pai do Bernardo, orientado por uma vizinha veterinária, com uma mistura de leite, mel e frutas batidos no liquidificador, dados a ele ou ela, nem se sabe o sexo, com a ajuda de uma seringa.

Xineném cabe na palma da mão do meu pequeno amigo e só há pouco abriu os olhos. Praticamente, só acorda pra bocejar e comer – e, nos seus poucos momentos de consciência, desenvolveu pelo Bernardo um amor tão grande que se enrosca todo, ou toda, nos cabelos dele, e ali fica agarrado, como os gambás aqui da rua fazem na pelagem das mães.

O pai do Bernardo fez contato com uma patrulha ambiental e avisou ao filho que o mais novo inquilino da casa terá de ser devolvido daqui a pouco à natureza. Mas o meu amigo não se conforma e chora.

– Deixa eu ficar com ele, por favor, por favor, deixa eu ficar…

O meu amigo não sabe algumas coisas que eu também não sabia quando tinha a idade dele. A primeira é que o amor da gente e o das pessoas e também o dos bichos só cresce de verdade quando é livre.

Os gestos universais cometidos por todos nós ao longo da vida ensinam com muita clareza que os amores, as paixões, os desejos e ainda a ternura e o afeto e todos os sentimentos bons coincidentes entre dois seres – como esse nascido entre o meu pequeno amigo e o gambazinho – só prosperam, claro, com carinho e troca, mas a liberdade é o seu maior alimento.

Sem liberdade, eles, os amores, morrem. E quando nem a liberdade é suficiente pra produzir saudade – na gente, nas outras pessoas, nos bichos -, isso significa que é preciso deixar o outro seguir seu caminho.

Senão, esse outro não vai viver feliz. E quem ama de verdade, gente ou bicho, como o Bernardo e o seu Xineném, que confunde os cabelos do meu amigo com os pelos da mãe, enfim, quem tem adoração verdadeira nunca vai querer a infelicidade do dono ou dona do seu amor.

É algo de difícil compreensão mesmo. Gostar muito de algo ou de alguém, muitas vezes, traz junto o demônio do ciúme, o medo inútil de perder, a sensação destrutiva da posse, o egoísmo de querer só pra si. Deve ser assim com o meu pequeno amigo na relação tão bonita de afeto com seu gambazinho Xineném.

O Bernardo também tem um cachorro, e talvez entenda melhor a sua linda história com Flor ou Xineném se observá-la pelos olhos do seu vira-lata.

Porque o cachorro dele vai à rua e assiste à vida e avista a vizinhança e com certeza late pros gatos das outras casas e passeia no sol e vê as outras crianças – mas não troca o meu amigo por ninguém, e sempre quer voltar pra casa depois, porque lá tem carinho, abrigo e comida boa dados por alguém que gosta muito dele e o protege.

Erich Fromm, o psicanalista, filósofo e sociólogo alemão que encantou as academias do século 20 mundo afora com obras como “O medo à liberdade” e “A arte de amar”, escreveu assim: “No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um, e, contudo, permaneçam dois.”

Ele também escreveu: “O amor imaturo diz: eu te amo porque preciso de ti. O amor maduro diz: eu preciso de ti porque te amo.” E ainda: “O amor é um ato de fé, e todo aquele que tem pouca fé também tem pouco amor.”

Talvez o Bernardo, um garotinho cheio de fé nas coisas essenciais da vida, leia um dia os escritos do Erich Fromm e os compreenda. Mas, por enquanto, ele apenas cede à projeção do banzo doído em que deve ficar quando tiver de se separar do seu pequenino Xineném.

Os passarinhos, os gambás, os macacos, os humanos não fomos feitos pra viver em gaiolas ou cercadinhos, sob o olhar de alguém que nos quer só pra si. O gambazinho do meu amigo já-já vai precisar da liberdade da mata, dos insetos que a habitam, das folhas, do chão molhado de chuva, e necessitar correr os riscos de ser livre e o perigo do insondável escondido atrás de cada tronco de árvore. Só assim ela ou ele vai crescer feliz, como o Bernardo deseja que ele ou ela cresça.

Mais ou menos como também vai acontecer com o meu pequeno amigo quando ele crescer um pouco mais.

Faz lembrar a história do menino recém-adolescido que, um dia, triste, confessou ao pai seu desconforto e seu desassossego com as liberdades do modo de vida da namorada, ela um pouco mais madura e já tomada pelos fogos femininos da juventude. O garoto, no fundo, só queria saber o que fazer pra prender a moça no cercadinho do seu abraço.

– O que eu faço, pai?

– Nada. Não faz nada.

Porque, nas coisas do amor – e o Bernardo vai poder entender um dia, talvez com algum sofrimento -, só a liberdade prende. A liberdade, o meu pequeno amigo vai saber, traz junto os favores da saudade. E quando nem a liberdade com os seus favores prender, como deve acontecer com o gambazinho Xineném na sua volta pra mata, é só porque não era pra ser como a gente pensava que deveria.

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