Novas coisas que eu faria, se pudesse

Se eu pudesse, embarcaria daqui a pouco num voo sentimental rumo a Macondo, onde seria recebido por “Remédios, a Bela, mulher mais bonita que existiu no mundo”, segundo a apresentação delicada do seu criador, Gabriel García Márquez, e ela me diria, com sinceridade e carinho, “bem-vindo, meu menino”,  e eu sorriria, e jamais esqueceria seu rosto, e ela também não se esqueceria do meu.

Se eu pudesse, depois de Macondo, viajaria no tempo e regressaria ao Rio de Janeiro do início do século XX e contaria a Machado de Assis que sou muito fã dele, especialmente pela composição da personagem Capitu, a supostamente dissimulada e dona de olhos de ressaca, assim descrita pelo narrador, Bentinho, seu marido, envenenado pelo ciúme depois de se convencer de que seu filho, Ezequiel, era fruto de uma traição jamais confirmada da mulher com seu melhor amigo, também chamado Ezequiel.

Diria ainda: “Seu Machado, o senhor, que descendia de escravos, teria muito orgulho hoje de sua condição de afrodescendente, creia.”

Atrasaria ainda mais os ponteiros do relógio, voltaria 517 anos no tempo e, se pudesse, encontraria Pedro Álvares Cabral no Porto de Lisboa, já pronto pra zarpar na direção do insondável do Brasil, e pediria: “Seu Cabral, posso ir com o senhor? Deixe-me assistir a esta sua saga. Quero escrever sobre ela e sobre o senhor daqui a uns cinco séculos. Posso?” Cabral diria que sim, e eu pisaria na Bahia antes mesmo de a Bahia existir e de eu mesmo existir.

Aproveitaria a viagem, se pudesse, e aguardaria dez anos por Caramuru, o náufrago, só pra entender os mistérios do seu amor por Paraguaçu, a índia tupinambá, e talvez eu me encantasse por Moema, a irmã dela.

Nessa viagem, se eu pudesse, tomaria as rédeas do relógio novamente e voaria sentado numa nuvem até 1986, no Estádio Jalisco, em plena Copa do México, onde vestiria a camisa do Brasil e pediria ao Zico pra bater aquele pênalti no lugar dele – só pra absolvê-lo desse fardo, e, certamente, eu também erraria a cobrança.

Se eu pudesse, diria a Chet Baker que ele já me fez chorar muitas vezes com sua voz e seu trompete. Humildemente, eu pegaria o violão e pediria que ele cantasse “I get along without you very well”. No fim, com o rosto lavado de lágrimas, diria: “Obrigado, Chet, beba aqui mais uma comigo e me conte dos seus amores.” Viraríamos, então, a madrugada na minha varanda, falando baixo sobre dores que, sem saber, as mulheres deixam nos homens. E talvez, entristecido, ele sacasse o trompete e solasse “Alone together”, e choraríamos mais um pouco juntos e um tanto bêbados.

Se eu pudesse, diria hoje ao Temer que ninguém o respeita, do Oiapoque ao Chuí, nem mesmo as poucas centenas de puxa-sacos dependentes do poder dele, e pediria que renunciasse e convocasse eleições gerais, e, nesse meu arroubo, eu o convenceria com meus argumentos sinceros, e Marcela, sua mulher, a recatada e do lar, chegaria muito bonita à sala e surpreenderia: “Querem café? Vão à cozinha fazer.”

Também, se eu pudesse, diria a cada deputado e senador a favor da quebra do contrato da Previdência que sinto vergonha deles. Muita.

Diria a Adalgisa, a mulher ideal e idealizada, se eu pudesse, pra ter cuidado com meu coração e minha alma infantis, pois eles, minha alma e meu coração, são crentes em tudo que ouvem. Falaria que, por ser assim, eu me desaponto com a indelicadeza de quem espero muito. Diria: “Adalgisa, embora a coragem não me conceda, eu rogo que me desaponte devagar, porque os desapontamentos doem como unhas espetadas no peito.”

Se eu pudesse, diria a Francis Bacon, o pintor anglo-irlandês, que aprecio mais a obra dele do que a do seu xará ancestral, o filósofo elisabetano, embora seja do segundo um ensinamento sobrevivente ao tempo: “A riqueza é como esterco, não é boa se não for distribuída.”

A Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, eu diria, se pudesse, que adoro uma frase atribuída a ele: “É preciso amar pra não adoecer.” E agradeceria por me conceder o autoconhecimento e a autocrítica.

Eu recitaria ao juiz Sérgio Moro, se pudesse, o poema “A flor e a náusea”, do Carlos Drummond de Andrade, com a esperança de que um verso tocasse seu coração: “Não, o tempo não chegou de completa justiça.”

A José, que criou Jesus como filho legítimo, como consta das Escrituras, eu diria “obrigado”, sem saber direito a razão do meu agradecimento, e relataria minha admiração e meu orgulho por ter sido batizado com seu nome. Contaria que meu avô Anacleto também foi carpinteiro. E cantaria pra ele “Como tem Zé na Paraíba”, de Jackson do Pandeiro, e talvez José achasse divertido.

Se eu pudesse, diria ao meu avô Anacleto que até hoje ele me inspira.

A todas as mulheres que fiz sofrer, se fiz, eu não diria nada. Se eu pudesse, só olharia bem fundo nos olhos de cada uma delas à espera de um perdão. E eu também as perdoaria.

Se pudesse, faria tanta coisa. Viajaria à Turquia, conheceria a Pensilvânia, atravessaria o deserto chileno do Atacama, dormiria uma noite em Roma com Adalgisa, onde faríamos amor mil vezes, assistiria com ela a um filme romântico num cinema de Paris, alimentaria os cangurus da Austrália, voaria com as araras azuis do Pantanal, nadaria com os peixes do Caribe dominicano e tomaria o sol do Trópico de Capricórnio, onde, ensinam as enciclopédias, sua posição jamais alcança o zênite do observador.

Revelaria ao moço da padaria da minha infância, se pudesse, que nunca me esqueci de quando, sem eu pedir nem pretender, ele leu vontade nos meus olhos e me deu um doce. E eu nem gostava de doce. Mas fiquei pra sempre grato, sem nunca ter entendido o gesto dele, talvez uma promessa a São Cosme e São Damião.

Se pudesse, eu me curvaria diante de Deus materializado e faria um silêncio de um século, e Deus entenderia tudo.

* A imagem que ilustra esta crônica é um retrato de Machado de Assis pintado em 1905 por Henrique Bernadelli.

7 comentários sobre “Novas coisas que eu faria, se pudesse

  1. Lendo esse lindo texto, viajei para minha infância e lembrei de um poema que descrevia bem o que gostaria de ser:

    Se pudesse escolher
    o que eu queria ser,
    a resposta so seria borboleta,
    pode crer.

    Quantos voos eu daria, em dia de sol nascente,
    para ver por toda rua a alegria de toda gente,

    Indo alto, voo livre,
    chegaria ao Corcovado.
    Bem perto do Cristo amado,
    para lhe dizer muito obrigado.

    Obrigado, e isso mesmo, pelo sol e pelo mar,
    pela Cidade Maravilhosa, que não canso de amar.

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