Coisas que eu lembro

Eu lembro que, no elevador de carga do antigo “Jornal do Brasil”, na Avenida Brasil 500, bem ali de frente pra boca suja da Baía de Guanabara, quase cabia um Fusca. Lembro que o sonho da gente era maior que um Fusca, e por ser tão grande não cabia naquele elevador.

Lembro que aquele elevador subia mais devagar do que a cólera em mim até hoje – mas, mesmo devagar, ele subia, e a minha cólera, também.

Eu lembro ainda que foi ali, não naquele elevador, mas seis andares acima, na redação do velho JB, que eu conheci o Lula Branco Martins.

Lula era o camarada do sorriso de mil dentes, tão bom conhecedor da engenharia dos desfiles de carnaval que, não tardou, passou a coordenar a cobertura da Marquês de Sapucaí com outro craque no assunto, o meu amigo querido Aydano André Motta. Os dois sucederam outra fera no tema, Alexandre Medeiros, também amigo e também querido. Grandes e inesquecíveis coberturas.

Lula foi repórter de Cultura, depois editor da revista “Programa” e era um cara que tinha sempre uma definição divertida pras coisas.

Eu lembro que o Lula namorava a Ítala Maduell, e que um parecia fazer muito bem ao outro naqueles dias tão cheios de futuro das vidas de todos nós. Lembro que o Lula dizia gostar muito das coisas que eu escrevia, e recordo também que eu admirava pacas o jeito de ele entender o mundo. Acho que não tive tempo de dizer isso a ele.

Eu lembro que a gente usava a gíria “pacas”, contração de “pra cacete” ou “pra caralho”.

Lembro que o futuro mencionado mais acima separou casais como o Lula e a Ítala, e ainda a convivência de tantos amigos – mas, acima dessas miudezas, lembro que, naquela época, ele, o futuro, era só uma estrada muito comprida. E seguimos.

Lembro que eu tinha acabado de ser pai pela primeira vez quando conheci o Lula e a Gisele Porto, outra pérola daquela redação do velho JB. Repórter apaixonada por esportes olímpicos, especialmente pela ginástica, recordo que a Gisele adorava a Nadia Comaneci, na época uma garota de uns 20 e poucos anos e, hoje, uma mulher de 55.

Eu me lembro do José Gonçalves Fontes dando esporro na gente pelo atraso na chegada aos plantões de fim de semana, e invade minha memória também a lembrança da absolvição recebida na segunda-feira diante de um elogio do Marcos Sá Corrêa a uma matéria mais bem escrita ou impecavelmente apurada no domingo.

Muitas dessas matérias, com certeza, foram feitas pelo Lula e pela Gisele.

Lembro a Danusia Bárbara, a Mara Caballero, o Jota Paulo, a Cristina Calmon, o Xico Vargas, o doutor Nascimento Brito passando em revista com seu perfume forte a tropa daquela redação vistosa a caminho da sala do Marcos Sá Corrêa. Lembro o Tim Lopes, o meu amigo tão especial Tim Lopes, e lembro o João Saldanha de camisa e calça jeans combinadas, chegando pra trabalhar, e o seu Sandro Moreira, e lembro e lembro e lembro. Lembro tanta gente.

Lembro agora, sobretudo, o Lula e a Gisele, e lembro os sonhos da gente naquele tempo, maiores que um Fusca e impossíveis de caber naquele elevador de carga, e lembro a vista do sexto andar de frente pra boca suja da Baía de Guanabara, com seus navios de cabotagem pra além da finada Perimetral, e recordo ainda o som pesado das máquinas de escrever na hora do fechamento. Tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec.

A alegria boba de ter um texto começado primeira página do jornal, eu lembro, e não esqueço também o orgulho que dava compartilhar da edição perfeita do Roberto Pompeu de Toledo, e seus ensinamentos e sua erudição – e estavam ali o Lula, com seu sorriso de mil dentes, e a Gisele, com sua paixão pela Nadia Comaneci. Estávamos todos.

Mas aí fico sabendo agora que o Lula e a Gisele escolheram o mesmo dia pra morrer, nesta terça-feira, 28 de março de 2017 – e, com eles dois, como já havia sido com o Fontes, que se foi bem antes, e com o Xico Vargas, e com a Mara Caballero, e com a Cristina Calmon, e com o Jota Paulo, e com a Danusia Bárbara, e com o Tim Lopes, e com o João Saldanha, e com o Sandro Moreira, e com tantos que conviveram naquele retângulo mágico do sexto andar de frente pra boca suja da Baía de Guanabara, de onde a gente assistia ao pôr-do-sol mais bonito da cidade, enfim, com o Lula e a Gisele morre mais um pouco daquela velha redação do JB e do nosso sonho de antigamente, e fica mais distante na memória o tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec das máquinas de escrever em fúria na hora do fechamento (nunca mais ninguém vai ouvir aquele som mágico).

Saudade do Lula Branco Martins, da Gisele Porto. Saudade de tanta gente e do nosso sonho bem maior que um Fusca, impossível de caber naquele  elevador.

* Foto da redação do velho JB nos anos 1980, capturada do blog albumfotojotabeniano.blogspot.com.br, postada por Sérgio Fleury

23 comentários sobre “Coisas que eu lembro

  1. Eu me lembro também, Marceuzinho, de tantas coisas,dos sonhos, do elevador, do por do sol, do estacionamento apelidado de rock in rio. Mais tarde, de você tocando violão no fumódromo implantado pelo Scofield. E tantas outras lembranças me assolam quando um dos que viveram aquele jornalismo do sexto andar nos deixa com mais saudade ainda. Força amigo. E, por nós que ficamos e por eles que partiram, bora lembrar e sonhar o que não cabe no elevador de cargas. Viva o Lula Branco Martins, dono de um texto bom demais, sempre apressado com apurações, listas e fechamentos, mas lotado de gentilezas e de paixões.

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  2. Muito bom texto, caro Marceu. Como sou um “pouquinho” mais velho, lembro da Av. Rio Branco 110-112, onde um então estudante de Direito varava as noites na Revisão, chefiada pelo velho Ribas, Jair e mais um monte de gente boa. E do barulho ensurdecedor quando abríamos a porta que dava para o salão dos linotipos, cada um com sua caldeira de chumbo derretido. Fresquinho, fresquinho lá… Abraço

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  3. Marceuzinho, cujo talento não cabe no elevador que cabe um Fusca. Nossa tristeza também não. Hoje fui ao cemitério me despedir da Gisele, que eu chamava de Gi, uma sílaba pequena, pra combinar no tamanho com essa grande mulher e jornalista. Chorei no Caju e aqui também. Mas como é bom saber que nossos amados coleguinhas serão eterno na memória de todos nós.

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  4. Querido Marceu,

    Lembro de quando, numa segunda-feira, corri atrás do telefone do JB apenas para falar contigo, elogiar o texto da sua coluna semanal.
    Frequentei o JB por dois caminhos, quando criança, indo com meu pai, velho jornalista da casa e de muitas casas; e adolescente, como editor de um jornal secundarista.
    Apesar do meu diploma , do meu registro profissional e da minha admiração, minha trajetória profissional foi distante das redações, mas delas bons amigos sempre me trouxeram notícias.
    Gisele Porto, próxima e distante, foi uma dentre eles. Se saber da sua partida abriu um certo buraco de tristeza, encontrar seu texto encheu um pouco esse vazio.
    Forte abraço do amigo

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