A Saara, Raduan Nassar e o ministro

Fui duas manhãs seguidas à Saara esta semana. De um ponto de vista sociológico, ou quem sabe até antropológico, a Saara talvez seja o lugar mais interessante do Brasil. Ou, pelo menos, do Rio – onde ela fica e de onde nem cartão postal é.

Pra quem não conhece, é preciso dizer logo. A Saara é bem diferente do Saara. A começar pelo gênero. É feminina, ao contrário do deserto que lhe empresta o nome.

A Saara também se difere do Saara pela multidão que a atravessa todos os dias, carregada de sentimentos distintos, a partir das 9h, à exceção dos domingos, num cenário bem distante da vastidão de areia e de nada do Norte da África, com seus 9.065.000 km², área maior que a de países continentais como o Brasil, ou como a Austrália, ou a Índia, ou ainda quase do tamanho dos Estados Unidos, ou de todo o território da Europa Ocidental.

O Saara atravessa 11 países africanos e tem população dispersa, estimada pela ONU em cerca de 2,5 milhões de pessoas. Este número, além do nome, é a única interseção possível do Saara com a Saara, a nossa, por onde passa, por mês, quantidade quase igual de gente de todas as classes sociais.

A Saara, na verdade, é uma sigla formada pelas iniciais de Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, espécie de shopping horizontal a céu aberto, no Centro Antigo do Rio, onde a democracia se realiza e faz festa todo dia, e onde se encontra de tudo pra comprar – de calcinha miúda, vendida a R$ 5, a cocar de índio; de pastel com caldo de cana a sushi feito por coreano; de boa comida árabe a tecidos finos adotados pelas principais grifes da cidade; de pôster da Madonna a fantasia de Chacrinha.

Aliás, fui ali duas manhãs seguidas, esta semana, pra ver fantasias de carnaval – outra das muitas especialidades do comércio da Saara. Vi uma de um novo “super-herói” de oportunidade, o Super-Moro. Assisti à multidão comprando uniformes de presidiários, alusão à turma enrolada com a Lava-Jato. Revi máscaras do Neymar, sempre ele, e perucas sintéticas de todas as cores, e cuecas com a frase sexista e homofóbica “o que é do homem a bicha não come”, e capas de Batman, e quepes de policial, e capacetes de bombeiro, e saias de Mulher-Maravilha, e colares de búzios africanos, e rolos e mais rolos de chita multicolorida, e rostos de todas as cores, todas as cores, todas as cores, numa mistura radical e feliz da vida humana na Terra.

Criada por árabes e judeus, a Saara hoje também está cheia de coreanos, e esta misturação bem-vinda já chamou a atenção até da ONU pela convivência pacífica de seus comerciantes – a mesma ONU que estima a população do Saara, o deserto africano.

São retalhos da colcha de humanidades que compõem nações vira-latas como o Brasil, e que, certamente, comoveriam almas generosas como a do escritor Raduan Nassar, 81 anos, ele mesmo filho de imigrantes libaneses – como também são libaneses muitos comerciantes da Saara -, agraciado agora com o Prêmio Camões, dado anualmente pelos governos do Brasil e de Portugal a autores de língua portuguesa.

Raduan, que talvez não conheça a Saara, e só saiba dela de ouvir falar, é um brasileiro único. Deveríamos nos orgulhar bem mais dele. Bem mais.

Abandonou a literatura há uns 30 anos pra se tornar agricultor. Em 2012, doou sua fazenda, chamada Lagoa do Sino, no interior paulista, ao governo Dilma, com a exigência de que a União ali fizesse uma universidade com ênfase nos estudos agrícolas.

A universidade foi feita e transformou as vidas de jovens de cerca de 40 cidades da região. Que outro fazendeiro faria isso no Brasil? Não me ocorre nenhum. Raduan fez isso em silêncio, porque, por princípio, não dá entrevistas.

Suas aparições são raras, como foi a de agora, em que, já longe do fazer literário, mas com a literatura ainda nele, surgiu na cidade de São Paulo pra receber o Prêmio Camões 2016.

No discurso de gratidão pela escolha do seu nome, em cerimônia concorrida no Museu Lasar Segall, Raduan disse o que pensa do governo de Michel Temer, a quem chamou de “repressor” e de protagonista de “tempos sombrios”. Roberto Freire, ministro da Cultura do Temer, estava presente, não gostou e tomou as dores. Saiu em defesa do chefe e chegou a sugerir que Raduan devolvesse o prêmio.

Freire, como escreveu Fernando Brito no seu blog Tijolaço, é um político. Não é homem de cultura. Está no cargo por contingências de ocasião, mas o posto não está nele. Deveria, por isso, pensar muito antes de dizer qualquer coisa sobre Raduan, de quem, talvez, não tenha lido nenhum livro.

Uma vez, acho que nos anos 1990, Freire, sei lá a razão, foi parar no burburinho do Bip Bip, o boteco de Copacabana, num domingo de roda de samba. Alguém passou com um cachorro na calçada, e o bicho pareceu não gostar do político pernambucano, porque desandou a latir pra ele.

Freire ficou muito irritado e bateu boca com o dono ou dona do cachorro. O descontrole dele foi tanto que a roda de samba parou.

Eu estava no boteco, assisti a tudo, e nunca esqueci aquela cena. A discussão mostrou um pouco do temperamento do atual ministro. Hoje, aquela imagem me veio à cabeça de novo, quando soube da reação do Freire às críticas sinceras – e pertinentes – do Raduan Nassar ao governo Temer.

Homem e escritor grandioso, sujeito tão generoso e amigo dos bichos, pequeno imenso retalho da colcha de humanidades que compõem o Brasil da Saara, com sua gente multicolorida, Raduan foi agora, tanto tempo depois da cena de descontrole do Freire no Bip Bip, o cachorro que latiu pro ministro.

Não quer dizer nada. Mas talvez diga muito.

17 comentários sobre “A Saara, Raduan Nassar e o ministro

  1. Amei, amei os dois livros do Raduar Nassan. Acho-o um monumento como escritor, mas não acredito que ao receber um prêmio tão importante precisasse se manifestar politicamente da maneira como o fez. Cabia ao senhor Roberto Freire, que sempre soube ser uma alma gentil, defender o governo que representava numa ocasião festiva e não politica. Há fóruns específicos para isso e o senhor Raduan Nassar terá sempre platéia e ouvintes para as suas manifestações de qualquer natureza.

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    1. Acredito que a ocasião e o lugar foram perfeitos. Quando o país é governado por pessoa que não aparece em público por temer reações, quando não se aproxima de nenhuma forma daqueles a quem deveria representar e defender os interesses, toda e qualquer oportunidade para manifestação de um pensamento contrário, é válida. Parabéns ao Nassar! Parabéns também, por ter feito o Sr Freire mostrar a sua cara. Abraços!!

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  2. Maravilhoso, Marceu!
    Eu também estava no Bip naquele dia e conto essa história repetidamente desde então pra caracterizar o que é o atual ministro da cultura do governo ilegítimo. É daqueles que deveria lavar a boca com sabão antes de se dirigir ao Raduan. E assim rasteja essa nossa parte da humanidade. Obrigado pelo texto.
    Agora, com o carnaval na porta, partiu Saara!!!

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  3. Sempre fui o admirador do escritor Raduar Nassan,mas não conhecia este seu lado humano,que o cronista cita em seu texto,até assistir emocionado o Globo Rural em uma dessas manhãs de domingo.E agora mais emocionado fiquei com seu engajamento político e indignado em relação a este governo golpista. Com certeza o nosso Raduar, lavou e enxaguou a alma de muitos brasileira que são a favor da verdadeira justiça.Valeu Raduar,valeu Marceu,pela bela homenagem.

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