A tristeza grande, o desapontamento excessivo, a surpresa negativa além do limite, uma porrada desproporcional do destino, tudo isso me conduz à prostração e não me ajuda a escrever.
Por isso, desde a manhã da terça-feira, dia 29 de novembro deste 2016 que já vai tarde, venho tentando dizer alguma coisa sobre o Guilherme Van der Laars, o Victorino Chermont e o Paulo Júlio Clement. Tento, retento e não consigo nada que preencha tão grande sensação de vazio e impotência e impossibilidade.
Eu já conhecia os três antes de 2006. Mas eles só viraram meus queridos companheiros nesta existência naquela Copa da Alemanha, nas tantas viagens que fizemos juntos, pra lá e pra cá, no país do Schweinsteiger.
A gente dividiu hotéis, fileiras de assentos de avião, balcões e mesas de bar, bancadas de imprensa nos estádios, filas de aeroporto, coletivas da seleção, confissões de saudade de casa, risadas, tantas coisas.
Sobretudo o Guilherme, que se tornou quase um siamês de mim naquela viagem tão feliz, um companheirão das madrugadas, ao lado ainda do fotógrafo Fernando Maia (amigo, precisamos nos ver, o tempo na Terra é muito ligeiro) e do André Guarabyra, nosso mago da informática, que nos salvava das encrencas com o computador (Guará, você também).
A tragédia imensa que matou quase o time todo da Chapecoense – e, mais ainda, matou a alegria de um clube e de sua torcida logo na primeira grande glória, como finalista de uma competição internacional -, essa ruína, essa debacle, esse fracasso da vida, essa desconstrução de toda promessa de felicidade, esse acontecimento inominável, isso tudo levou junto a vida de 20 jornalistas, e, entre eles, três que moravam, ainda moram, vão morar pra sempre dentro do meu coração.
A tragédia que devastou as vidas das mães e dos pais e das mulheres e dos filhos e dos parentes e dos amigos todos do Ananias, do Bruno Rangel, do Danilo, do Cléber Santana, do Marcelo, do Arthur Maia e demais jogadores da Chapecoense foi socializada com o lado de cá da notícia.
Agora, quando escrevo, é meio da tarde de quarta-feira, quase dois dias depois da queda esquisita do avião, e o Cristo Redentor segue sumido no meio das nuvens, que chovem aqui em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, e parecem chover aqui dentro de casa e aqui dentro de mim.
A morte é cega e estúpida. A morte não discerne. Não poupa os justos, nem os jovens, nem os seres mais necessários. É óbvia na nossa finitude, mas, quando surpreende, por tão inusitada, como fez agora, choca e paralisa.
Mas corta novamente pra Copa de 2006. Naquela Alemanha toda enfeitada pro seu primeiro Mundial depois da reunificação, naquele país em completa festa e de atitudes hospitaleiras com a gente, eu fiquei muito próximo deles três – Guilherme, PJ e Vitu.
Cada um, por uma razão diferente. O PJ assessorava o Ronaldo Fenômeno, e eu vivia na cola dele. Apesar de tanta diversão, a vida do PJ não foi fácil lá. Como nós, ele também levou muitos dribles do Ronaldo. Só os zagueiros adversários é que não tiveram problema com o camisa 9 do Brasil. Porque o Ronaldo jogou melhor fora dos campos do que dentro.
PJ já havia sido meu contemporâneo de JB e, depois, do “Globo”. Tínhamos muitos queridos amigos em comum, como o Aydano André Motta e o Alexandre Medeiros – e acho também que o meu irmão João Pimentel, o Janjão, já era uma grande amizade dele naquela época.
Tricolor curtido nos dias da Máquina de Rivelino, o PJ não transportava a paixão dele pros comentários esportivos no jornal e, mais recentemente, na televisão.
Lembro que bebemos um chope em Frankfurt, antes da derrota do Brasil pra França, 1 a 0, gol do Henry, no jogo do meião arriado do Roberto Carlos. O PJ falou bastante do Ronaldo.
O Guilherme virou amigo por uma dessas coisas que a gente não sabe explicar, mas podem ser resumidas, talvez, como amor à segunda vista. Já nos conhecíamos da Infoglobo. Mas a intimidade era pouca. Até que viajamos lado a lado no avião pra Suíça, baldeação pra Alemanha, e uma amizade nasceu.
Na Copa, nos quase 60 dias longe do Brasil, viramos parceiros, amigos de infância, irmãos camaradas no parque de diversões que sempre é um Mundial, tanto faz se a seleção da gente ganha ou perde.
Na Suíça, aos pés dos Alpes, na pequena cidade de Weggis, onde o Brasil (não) se preparou pra disputa, e depois na Alemanha, onde começou a ser elaborado o 7 a 1 de oito anos adiante, andávamos juntos pra cima e pra baixo. Dividimos hotel, cervejas, outros hotéis, mais cervejas, outras cervejas, matérias, mais matérias, outras matérias, ele escrevendo pro “Extra”, eu pro “Globo”.
Foi o Guilherme, naquela Copa, quem descobriu o que era tratado no ambiente da seleção como o “quarto segredo de Fátima” – o peso do Ronaldo Fenômeno.
O Vitu estava sempre ali perto, na cobertura do Brasil do Parreira e do Zagallo. Grande amigo e parceiro de reportagens do Lúcio de Castro, outro irmão meu de ofício e de sonhos, Vitu brilhou naquela cobertura do SporTV.
A Copa da Alemanha passou, mas o afeto e a aproximação com esses três caras, não. Lembro que, num domingo de futebol, cometi a ousadia de ligar pro celular do Vitu do botequim onde eu assistia a um jogo pela TV só pra comemorar com ele um gol do Flamengo. Ousadia porque ele estava na tela da TV, trabalhando no Maracanã!
Guilherme depois foi pra TV Globo, onde cumpriu, até esse voo, uma carreira brilhante de produtor da equipe de esportes. Sua última reportagem, que não chegou a ser concluída, era sobre o momento tão feliz, até a última segunda-feira, da curta história da Chapecoense. Curta história dele também.
Do Guilherme, lembro ainda que, na Copa da Alemanha, ele estava pra casar. Todo apaixonado pela namorada, a Carol, estilista talentosa, que eu só conheceria na volta da Copa, hoje mãe dos dois filhos dele e grávida do terceiro, que o meu amigo não vai poder ver nem abraçar.
Na madrugada de segunda pra terça, eu estava acordado por volta de 4h da manhã, quando o plantão da TV informou da queda do avião que matou tantos futuros.
Guilherme foi um dos primeiros caras a me ligar quando virei editor de esportes do “Globo”. Novamente, foi um dos primeiros a ligar quando deixei a editoria. Por fim, foi também um dos primeiros quando deixei o jornal, um ano e dois meses atrás. Ele era assim, diligente e divertido. Sabia se emocionar e até chorar, mas vivia com um sorriso pregado no rosto.
A gente já não se via tanto, mas a existência dele era muito presente pra mim. Vai continuar sendo. Acho que foi na Lagoa a última vez em que o vi. Ele estava numa dessas bicicletas elétricas, a caminho da redação. Falou da Carol. Falou dos filhos. Falou do trabalho.
Quando o menino mais velho dele escolheu o Botafogo pra torcer, ele, um alvinegro apaixonado, me ligou pra contar. Quando o menino começou a identificar os escudos de todos os times de futebol da Série A – da Chapecoense, inclusive -, ele me ligou pra contar.
Vitu tentou me levar pra Fox, a mesma Fox do PJ, quando deixei o “Globo”. O destino não quis que eu fosse. Se tivesse ido, quem sabe, poderíamos estar juntos no voo pra Medellín, como havíamos estado – eu, ele e o Guilherme – no avião que nos trouxe de volta da Copa da Alemanha.
A gente se preocupa e se ocupa com tanta besteira. Reclama e se irrita com o que não tem relevância, discute e sofre por coisa miúda, fica incomodado com bobagens e carências terrenas – e, enquanto isso, sem aviso, a vida se esgota a cada minuto e nem notamos.
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A arte tão bonita acima é do Chico Caruso. Foi publicada na capa do caderno de esportes do “Jornal do Brasil” de 21 de janeiro de 1983, um dia depois da morte do Garrincha.