Donga, Arraial do Cabo e alguns sentimentos

Fui convidado a escrever a biografia do brasileiro Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1889-1974), violonista, parceiro do Pixinguinha e do João da Baiana, compositor de tanta música bonita, mas que entrou reduzido na História como o cara que registrou o maxixe “Pelo telefone”, em 1916, pela Casa Edison, e fez constar da bolacha do disco, pela primeira vez, o gênero “samba”. Fiquei feliz à beça com o convite.

Aliás, reduzido, vírgula. O que o Donga fez, vírgula de novo, foi muita coisa.

Abre parêntese. O convite foi feito pelo querido Didu Nogueira no meio de uma barulheira danada, e eu quase não entendi. Estávamos na varanda do Vivo Rio, a casa de shows no Rio de Janeiro, no intervalo de uma roda de samba comandada por outro amigo, o Moacyr Luz. Meu pensamento nem estava ali. Mas o convite me chamou de volta.

Márcia Zaíra, neta do Donga, não estava presente. Comandante, ao lado do Didu, de um projeto grande que vem por aí sobre o Donga, Márcia, pra minha alegria, assinou o convite feito pelo Didu. Aceitei. Fecha parêntese.

Corta pro primeiro parágrafo. Donga é considerado, por isso, pelo que está escrito no primeiro parágrafo, o “inventor do samba”, num episódio até hoje tão cheio de controvérsias. Mas ele foi muito mais – e é isso que o livro, ainda nem começado, vai tentar mostrar.

Não só o gênero, mas a autoria de “Pelo telefone” segue contestada desde 1917, ano em que foi a música mais executada do carnaval – e viva o carnaval!, com todas as alegrias e tristezas que desperta na gente.

“Pelo telefone” foi registrado pelo Donga como samba, mas, na verdade, é um “maxixe de roda”, obra coletiva surgida nas cantorias da casa da Tia Ciata – rodas que deram ao Brasil gênios como o próprio Pixinguinha.

A letra consagrada de “Pelo telefone” foi atribuída mais tarde ao jornalista Mauro de Almeida, que passou a assinar a música como parceiro do Donga. Mas a letra do Mauro também é controversa, porque seria paródia do canto das rodas da Tia Ciata, composto por muitos, e entre esses muitos, além do Donga, estariam o João da Baiana, o Pixinguinha, e ainda figuras como Sinhô, Caninha e Hilário Jovino Ferreira.

Foi o nascimento do samba. Nenhum parto é fácil. Os partos doem. Tudo isso ainda vou saber, espero.

Uma alegria juvenil, ou infantil, o que é mais provável, faz o cronista digital relatar isso aqui.

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Passei o último fim de semana em Arraial do Cabo,  cidade costeira fluminense, na Região dos Lagos, a uns 150 km do Rio. Voltei com a sensação de que a beleza mais generosa do mar brasileiro mora ali.

Eu me lembrei de Cayo Largo, em Cuba, onde estive em 1996 e em 2000, e repeti pra mim mesmo algumas vezes, em pensamento, que a vida é curta demais pra gente desprezar suas ofertas. Discernir as melhores ofertas da vida é que talvez seja o nosso maior desafio, eu também pensei. Escolher é difícil, pensei ainda.

Praia do Forno, Praia Grande, Pontal do Atalaia, Praia do Farol, Prainha, tanta paisagem bonita, bonita toda vida. Nunca mais vou esquecer.

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Donga e Arraial do Cabo, o que uma coisa tem a ver com a outra? Nada. Nada mesmo.

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Alguns sentimentos são tão particulares, e ao mesmo tempo tão grandes, que não podem ser divididos com ninguém. Só com o pensamento da gente. Com ninguém mais.

São sentimentos resultantes de declarações de amor feitas em silêncio, só com os olhos; ou resultantes de desfeitas, ou de descuidos cometidos com nosso coração.

Alguns sentimentos são como o mar de Arraial do Cabo, ou como a existência do Donga – muito transparentes, muito, até demais, mas insondáveis, pelo menos até a emersão após o primeiro mergulho, ou o segundo, ou o terceiro, ou o quarto, ou o quinto, ou o sexto, ou o sétimo, ou o oitavo, ou o próximo, se houver.

Coisas que eu lembro

Eu lembro que, no elevador de carga do antigo “Jornal do Brasil”, na Avenida Brasil 500, bem ali de frente pra boca suja da Baía de Guanabara, quase cabia um Fusca. Lembro que o sonho da gente era maior que um Fusca, e por ser tão grande não cabia naquele elevador.

Lembro que aquele elevador subia mais devagar do que a cólera em mim até hoje – mas, mesmo devagar, ele subia, e a minha cólera, também.

Eu lembro ainda que foi ali, não naquele elevador, mas seis andares acima, na redação do velho JB, que eu conheci o Lula Branco Martins.

Lula era o camarada do sorriso de mil dentes, tão bom conhecedor da engenharia dos desfiles de carnaval que, não tardou, passou a coordenar a cobertura da Marquês de Sapucaí com outro craque no assunto, o meu amigo querido Aydano André Motta. Os dois sucederam outra fera no tema, Alexandre Medeiros, também amigo e também querido. Grandes e inesquecíveis coberturas.

Lula foi repórter de Cultura, depois editor da revista “Programa” e era um cara que tinha sempre uma definição divertida pras coisas.

Eu lembro que o Lula namorava a Ítala Maduell, e que um parecia fazer muito bem ao outro naqueles dias tão cheios de futuro das vidas de todos nós. Lembro que o Lula dizia gostar muito das coisas que eu escrevia, e recordo também que eu admirava pacas o jeito de ele entender o mundo. Acho que não tive tempo de dizer isso a ele.

Eu lembro que a gente usava a gíria “pacas”, contração de “pra cacete” ou “pra caralho”.

Lembro que o futuro mencionado mais acima separou casais como o Lula e a Ítala, e ainda a convivência de tantos amigos – mas, acima dessas miudezas, lembro que, naquela época, ele, o futuro, era só uma estrada muito comprida. E seguimos.

Lembro que eu tinha acabado de ser pai pela primeira vez quando conheci o Lula e a Gisele Porto, outra pérola daquela redação do velho JB. Repórter apaixonada por esportes olímpicos, especialmente pela ginástica, recordo que a Gisele adorava a Nadia Comaneci, na época uma garota de uns 20 e poucos anos e, hoje, uma mulher de 55.

Eu me lembro do José Gonçalves Fontes dando esporro na gente pelo atraso na chegada aos plantões de fim de semana, e invade minha memória também a lembrança da absolvição recebida na segunda-feira diante de um elogio do Marcos Sá Corrêa a uma matéria mais bem escrita ou impecavelmente apurada no domingo.

Muitas dessas matérias, com certeza, foram feitas pelo Lula e pela Gisele.

Lembro a Danusia Bárbara, a Mara Caballero, o Jota Paulo, a Cristina Calmon, o Xico Vargas, o doutor Nascimento Brito passando em revista com seu perfume forte a tropa daquela redação vistosa a caminho da sala do Marcos Sá Corrêa. Lembro o Tim Lopes, o meu amigo tão especial Tim Lopes, e lembro o João Saldanha de camisa e calça jeans combinadas, chegando pra trabalhar, e o seu Sandro Moreira, e lembro e lembro e lembro. Lembro tanta gente.

Lembro agora, sobretudo, o Lula e a Gisele, e lembro os sonhos da gente naquele tempo, maiores que um Fusca e impossíveis de caber naquele elevador de carga, e lembro a vista do sexto andar de frente pra boca suja da Baía de Guanabara, com seus navios de cabotagem pra além da finada Perimetral, e recordo ainda o som pesado das máquinas de escrever na hora do fechamento. Tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec.

A alegria boba de ter um texto começado primeira página do jornal, eu lembro, e não esqueço também o orgulho que dava compartilhar da edição perfeita do Roberto Pompeu de Toledo, e seus ensinamentos e sua erudição – e estavam ali o Lula, com seu sorriso de mil dentes, e a Gisele, com sua paixão pela Nadia Comaneci. Estávamos todos.

Mas aí fico sabendo agora que o Lula e a Gisele escolheram o mesmo dia pra morrer, nesta terça-feira, 28 de março de 2017 – e, com eles dois, como já havia sido com o Fontes, que se foi bem antes, e com o Xico Vargas, e com a Mara Caballero, e com a Cristina Calmon, e com o Jota Paulo, e com a Danusia Bárbara, e com o Tim Lopes, e com o João Saldanha, e com o Sandro Moreira, e com tantos que conviveram naquele retângulo mágico do sexto andar de frente pra boca suja da Baía de Guanabara, de onde a gente assistia ao pôr-do-sol mais bonito da cidade, enfim, com o Lula e a Gisele morre mais um pouco daquela velha redação do JB e do nosso sonho de antigamente, e fica mais distante na memória o tlec, tlec, tlec, tlec, tlec, tlec das máquinas de escrever em fúria na hora do fechamento (nunca mais ninguém vai ouvir aquele som mágico).

Saudade do Lula Branco Martins, da Gisele Porto. Saudade de tanta gente e do nosso sonho bem maior que um Fusca, impossível de caber naquele  elevador.

* Foto da redação do velho JB nos anos 1980, capturada do blog albumfotojotabeniano.blogspot.com.br, postada por Sérgio Fleury

A febre amarela do governo Crivella

A demissão do jornalista Caio Barbosa do jornal “O Dia”, do Rio, por pressão do prefeito Crivella, segundo versão disseminada nas redes sociais e não desmentida até agora pela direção da empresa, desaponta quem acredita que um dos papéis fundamentais da imprensa é cobrar eficiência e honestidade do poder público com independência e liberdade.

Caio fez uma reportagem corriqueira sobre o avanço dos cariocas aos postos de saúde em busca da vacina contra febre amarela e relatou as dificuldades de quem tem penado nas filas. A matéria, pelo jeito, irritou Crivella.

É esquisito, porque em nenhuma linha foi feita uma só menção direta ao prefeito, ressalvado o comentário de um entrevistado gaiato, que, sem citar o nome do bispo, lembrou, com ironia, a intenção eleitoral dele de “cuidar das pessoas”, caso vencesse a disputa no segundo turno com Marcelo Freixo.

Fico imaginando a reação do prefeito se ele fosse citado, então, e apontado como culpado pelas filas.

O cronista digital entra atrasado de propósito neste assunto, ocorrido há pouco mais de uma semana, por achar que é uma pequena contribuição pra retardar seu esquecimento. Tomara que consiga.

O episódio fez lembrar o tempo de caderno “Cidade” do finado “Jornal do Brasil”, na época dirigido pelo brilhante Marcos Sá Corrêa. Naqueles dias, repórter de geral, jargão das redações pra designar o jornalista que faz cobertura local, eu escrevi uma reportagem boboca sobre a falta de cuidado do poder público com o entorno do Parque Guinle, “quintal” do Palácio Laranjeiras – como chamei na matéria -, onde residia o então governador Moreira Franco.

A matéria foi boboca, mas irritou o Moreira. O governador, ou alguém sob as ordens dele, como talvez tenha ocorrido agora com o Caio, pressionou a direção do JB, questionou o que eu havia escrito, cobrou uma adesão à versão oficial, mas as queixas não me atingiram. Só chegaram a mim porque um dos editores-executivos, o supercompetente Ricardo Boechat, me contou.

O jornal era pró-Moreira, não escondia isso, mas não tive meu emprego ameaçado. Pelo contrário. Logo depois, fui até transferido como repórter especial pra editoria de Política, onde poderia incomodar até muito mais o Moreira. Era outro tempo. Esse tempo existiu – acreditem, estudantes.

“O Dia” perdeu uma grande chance de mostrar ao Crivella que não se negocia com notícia. Notícia é notícia. O melhor exemplo talvez seja o do futebol. Um repórter pode contar de muitas formas como foi um jogo, mas o que vai ficar na História, na imensa maioria das situações, é só o resultado.

Às vezes, até o placar escapa da memória – mas o resultado da partida todo mundo lembra pra sempre.

O absurdo da demissão do Caio, se a razão tiver sido mesmo esta, agride o jornalismo, enche de vergonha a democracia, esbofeteia o bom senso que deve reger as redações, dá mau exemplo às novas gerações em gestação nas faculdades de Comunicação, fortalece os piores políticos e, acima de tudo, pune o leitor.

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Li em algum lugar uma frase em inglês, que dizia assim: “Tudo que eu preciso é de um amor e de uma boa taça de vinho.” Muita gente pode até abrir mão do vinho, trocar por cerveja ou caipirinha, mas duvido que alguém não queira de verdade um amor. A não ser que já tenha um.

O que isso tem a ver com a demissão do Caio?

Nada. Só achei interessante, e deu vontade de reproduzir aqui.

Novas coisas que eu faria, se pudesse

Se eu pudesse, embarcaria daqui a pouco num voo sentimental rumo a Macondo, onde seria recebido por “Remédios, a Bela, mulher mais bonita que existiu no mundo”, segundo a apresentação delicada do seu criador, Gabriel García Márquez, e ela me diria, com sinceridade e carinho, “bem-vindo, meu menino”,  e eu sorriria, e jamais esqueceria seu rosto, e ela também não se esqueceria do meu.

Se eu pudesse, depois de Macondo, viajaria no tempo e regressaria ao Rio de Janeiro do início do século XX e contaria a Machado de Assis que sou muito fã dele, especialmente pela composição da personagem Capitu, a supostamente dissimulada e dona de olhos de ressaca, assim descrita pelo narrador, Bentinho, seu marido, envenenado pelo ciúme depois de se convencer de que seu filho, Ezequiel, era fruto de uma traição jamais confirmada da mulher com seu melhor amigo, também chamado Ezequiel.

Diria ainda: “Seu Machado, o senhor, que descendia de escravos, teria muito orgulho hoje de sua condição de afrodescendente, creia.”

Atrasaria ainda mais os ponteiros do relógio, voltaria 517 anos no tempo e, se pudesse, encontraria Pedro Álvares Cabral no Porto de Lisboa, já pronto pra zarpar na direção do insondável do Brasil, e pediria: “Seu Cabral, posso ir com o senhor? Deixe-me assistir a esta sua saga. Quero escrever sobre ela e sobre o senhor daqui a uns cinco séculos. Posso?” Cabral diria que sim, e eu pisaria na Bahia antes mesmo de a Bahia existir e de eu mesmo existir.

Aproveitaria a viagem, se pudesse, e aguardaria dez anos por Caramuru, o náufrago, só pra entender os mistérios do seu amor por Paraguaçu, a índia tupinambá, e talvez eu me encantasse por Moema, a irmã dela.

Nessa viagem, se eu pudesse, tomaria as rédeas do relógio novamente e voaria sentado numa nuvem até 1986, no Estádio Jalisco, em plena Copa do México, onde vestiria a camisa do Brasil e pediria ao Zico pra bater aquele pênalti no lugar dele – só pra absolvê-lo desse fardo, e, certamente, eu também erraria a cobrança.

Se eu pudesse, diria a Chet Baker que ele já me fez chorar muitas vezes com sua voz e seu trompete. Humildemente, eu pegaria o violão e pediria que ele cantasse “I get along without you very well”. No fim, com o rosto lavado de lágrimas, diria: “Obrigado, Chet, beba aqui mais uma comigo e me conte dos seus amores.” Viraríamos, então, a madrugada na minha varanda, falando baixo sobre dores que, sem saber, as mulheres deixam nos homens. E talvez, entristecido, ele sacasse o trompete e solasse “Alone together”, e choraríamos mais um pouco juntos e um tanto bêbados.

Se eu pudesse, diria hoje ao Temer que ninguém o respeita, do Oiapoque ao Chuí, nem mesmo as poucas centenas de puxa-sacos dependentes do poder dele, e pediria que renunciasse e convocasse eleições gerais, e, nesse meu arroubo, eu o convenceria com meus argumentos sinceros, e Marcela, sua mulher, a recatada e do lar, chegaria muito bonita à sala e surpreenderia: “Querem café? Vão à cozinha fazer.”

Também, se eu pudesse, diria a cada deputado e senador a favor da quebra do contrato da Previdência que sinto vergonha deles. Muita.

Diria a Adalgisa, a mulher ideal e idealizada, se eu pudesse, pra ter cuidado com meu coração e minha alma infantis, pois eles, minha alma e meu coração, são crentes em tudo que ouvem. Falaria que, por ser assim, eu me desaponto com a indelicadeza de quem espero muito. Diria: “Adalgisa, embora a coragem não me conceda, eu rogo que me desaponte devagar, porque os desapontamentos doem como unhas espetadas no peito.”

Se eu pudesse, diria a Francis Bacon, o pintor anglo-irlandês, que aprecio mais a obra dele do que a do seu xará ancestral, o filósofo elisabetano, embora seja do segundo um ensinamento sobrevivente ao tempo: “A riqueza é como esterco, não é boa se não for distribuída.”

A Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, eu diria, se pudesse, que adoro uma frase atribuída a ele: “É preciso amar pra não adoecer.” E agradeceria por me conceder o autoconhecimento e a autocrítica.

Eu recitaria ao juiz Sérgio Moro, se pudesse, o poema “A flor e a náusea”, do Carlos Drummond de Andrade, com a esperança de que um verso tocasse seu coração: “Não, o tempo não chegou de completa justiça.”

A José, que criou Jesus como filho legítimo, como consta das Escrituras, eu diria “obrigado”, sem saber direito a razão do meu agradecimento, e relataria minha admiração e meu orgulho por ter sido batizado com seu nome. Contaria que meu avô Anacleto também foi carpinteiro. E cantaria pra ele “Como tem Zé na Paraíba”, de Jackson do Pandeiro, e talvez José achasse divertido.

Se eu pudesse, diria ao meu avô Anacleto que até hoje ele me inspira.

A todas as mulheres que fiz sofrer, se fiz, eu não diria nada. Se eu pudesse, só olharia bem fundo nos olhos de cada uma delas à espera de um perdão. E eu também as perdoaria.

Se pudesse, faria tanta coisa. Viajaria à Turquia, conheceria a Pensilvânia, atravessaria o deserto chileno do Atacama, dormiria uma noite em Roma com Adalgisa, onde faríamos amor mil vezes, assistiria com ela a um filme romântico num cinema de Paris, alimentaria os cangurus da Austrália, voaria com as araras azuis do Pantanal, nadaria com os peixes do Caribe dominicano e tomaria o sol do Trópico de Capricórnio, onde, ensinam as enciclopédias, sua posição jamais alcança o zênite do observador.

Revelaria ao moço da padaria da minha infância, se pudesse, que nunca me esqueci de quando, sem eu pedir nem pretender, ele leu vontade nos meus olhos e me deu um doce. E eu nem gostava de doce. Mas fiquei pra sempre grato, sem nunca ter entendido o gesto dele, talvez uma promessa a São Cosme e São Damião.

Se pudesse, eu me curvaria diante de Deus materializado e faria um silêncio de um século, e Deus entenderia tudo.

* A imagem que ilustra esta crônica é um retrato de Machado de Assis pintado em 1905 por Henrique Bernadelli.

Era uma vez o país que eu sonhava

No país que eu sonhava, vigorava o sistema monarquista parlamentar. O rei era Dom Pedro II, sujeito bom e digno, carioca de nascimento, homem público maior, um cara justo, monarca que, na vida real, alheia ao meu sonho, havia sido uma das maiores vítimas dos seres abjetos da política no Brasil.

Eles, os seres abjetos da política no Brasil, sempre foram muitos. Menos no país dos meus sonhos – e, nele, Pedro II reinava redimido.

O primeiro-ministro do país que eu sonhava era Darcy Ribeiro, que acumulava ainda o posto de ministro da Felicidade Coletiva, criado por ele mesmo, com a concordância de Pedro II, pra assegurar a justiça social e o equilíbrio entre os poderes e, sobretudo, entre as classes.

Não havia classes no meu país sonhado. Darcy só garantia que assim prosseguíssemos. E prosseguíamos.

Darcy, aliás, nesse meu mundo ideal, havia sido escolhido pro Nobel da Paz, mas havia se recusado a receber o prêmio. Com o sorriso de quem se amava muito, mas muito mesmo, tinha dito, ao ser informado da escolha, que não precisava, não cabia, não carecia. “Podem ficar, obrigado, de coração, não precisa, não é desfeita.”

No país dos meus sonhos, só se chorava de alegria. Uma certa sensação de euforia, sem a necessidade de drogas pra isso, dominava todo o povo – e assim meu país seguia, seguia e seguia.

Leonel Brizola desempenhava, nesse meu país, o papel de ministro das Importâncias, pasta que reunia Educação, Saúde, Reforma Agrária e, pro desconforto de alguns, Comunicações. Seus principais assessores eram Joaquim Nabuco e Guimarães Rosa. Brizola os ouvia, parecia incrível, mas os ouvia.

Lula, melhor companheiro do Brizola nesse meu país, era o ministro do Trabalho, da Previdência, da Agricultura, da Segurança Alimentar e da Distribuição Justa das Riquezas. Tudo dava certo nessa minha nação.

Havia poucos ministérios no país dos meus sonhos. Eduardo Suplicy era o ministro da Justiça. Suplicy obedecia a um grande conselho presidido por Tiradentes e integrado por homens tão justos quanto Gilberto Freire e Luís Carlos Prestes.

Minhas amigas Débora Tomé e Flávia Oliveira ocupavam, respectivamente, os ministérios da Mulher e da Igualdade Racial. Zumbi dos Palmares e Teresa de Benguela, consultados na composição do governo, referendavam seus nomes.

Leonardo Boff era o ministro da Ecologia. Grande ministro, assessorado por Dom João VI. Que dupla faziam.

Havia ainda um ministério só pra cuidar da causa gay e dos transgêneros, e era ocupado pela cidadã trans Indianara Alves Siqueira, comandante da ONG carioca TransRevolução. Transrevolucionária, a Indianara era a ministra das Garantias Fundamentais dos Gays e de Todxs Transgêneros.

Chiquinha Gonzaga era a ministra da Cultura. Seu principal conselheiro era o maestro Villa-Lobos. Sua secretária era a Maria Teresa Madeira, indicada pelo Ernesto Nazareth. Sob o guarda-chuva do ministério da dona Chiquinha, havia uma importante Secretaria, a do Samba, e à frente dela estava o Donga.

No Ministério do Esporte estava o Tostão. Seus secretários-executivos eram o Sócrates e o querido José Trajano.

O ministro da Fazenda e do Planejamento era o meu pai-filho-irmão-amigo Alfredo Melo, dono do Bip Bip, o boteco de Copacabana. Alfredinho havia inaugurado a gestão do livre arbítrio nas finanças públicas – aquele colega ministro que precisasse de mais verbas tinha liberdade pra pegar, ele mesmo, dinheiro do cofre público, e ninguém ludibriava ninguém, e esse modelo de gerência dos recursos coletivos tinha se consagrado como o ideal nesse meu mundo infenso às maldades humanas.

Pro Ministério da Juventude, o primeiro-ministro Darcy, sabido, havia escalado a menina Ana Júlia, estudante do Paraná. A pasta da Transigência, considerada fundamental pelo rei Pedro II, e cuja criação fora acatada por Darcy na montagem do governo, tinha no comando Beatriz Carneiro da Cunha.

No Ministério dos Transportes, do Futuro e da Internet estava Juscelino Kubitscheck, que recebera a missão, também a pedido de Pedro II, depois de uma consulta a João Goulart.

A Petrobras, no país que eu sonhava, era presidida pelo Getúlio Vargas. Getúlio, na verdade, estava no Ministério das Riquezas Energéticas, e acumulava a presidência da estatal. Era também um dos principais interlocutores de Pedro II e Darcy. Os três consumiam madrugadas e madrugadas e madrugadas, conversando, conversando, conversando, conversando.

O chanceler do meu país ideal era o Ítalo Zappa – e o seu Ítalo (que saudade dele) ouvia alguns conselhos do Osvaldo Aranha e do Rui Barbosa. Não todos, vá lá. Alguns. Somente alguns.

No país que eu sonhava, não havia ameaça às garantias fundamentais dos trabalhadores. Os velhos eram muito respeitados também. Nenhuma criança estava fora da escola, e havia vagas pra todos os doentes nos hospitais, todos públicos – que, por sinal, estavam sempre vazios, ao contrário das escolas, sempre cheias e também todas públicas e aplaudidas mundo afora por seu ensino considerado de excelência.

No país que eu sonhava, não havia Michel Temer nem Rodrigo Maia no poder. Tampouco Renan Calheiros. Não tinha também a versão do Sérgio Cabral que se vê hoje, de cabeça raspada, humilhado, olhos avexados, metido em roupa de presidiário comum. Ele, o Cabral Filho, era só um vascaíno apaixonado, que não envergonhava o pai, o jornalista Sérgio Cabralzão.

Eduardo Cunha já era passado antes mesmo de existir nesse meu país imaginado. Nem se falava dele. De quem se trata mesmo?

O presidente do Supremo Tribunal Federal era o professor Geraldo Prado. Todas as instituições funcionavam, e éramos todos felizes. Muito felizes.

Mas aí eu acordei com o barulho das manifestações deste 15 de março contra tudo que não havia no país dos meus sonhos – e Dom Pedro II e Darcy Ribeiro e Chiquinha Gonzaga e Getúlio Vargas e Leonel Brizola e João Goulart e Donga e Dom João VI e Zumbi dos Palmares e Teresa de Benguela e Tiradentes e Sócrates e Joaquim Nabuco e Guimarães Rosa e Villa-Lobos e Ernesto Nazareth e tantos outros e tantos outros e tantos outros estavam todos mortos, e o legado deles, quase isso.

E a Indianara estava sofrendo preconceitos por aí, e minhas amigas Débora Tomé e Flávia Oliveira não podiam descansar um só segundo em suas grandes lutas pelas igualdades de raças e de gêneros.

E o Suplicy enfrentava mais um enxovalho da polícia de São Paulo, e o amado Alfredinho do Bip Bip chorava mais um pouco pelas desigualdades expostas nas calçadas de Copacabana.

E o Eduardo Cunha, embora preso, existia, e o Temer, também – e o Cabral Filho vestia roupa de presidiário comum, e não havia nenhum desses ministérios sonhados, nem escolas boas suficientes pra todas as crianças, e os hospitais públicos eram ruins e apinhados de enfermos, e o país dos meus sonhos não existia.

O meu país quimérico era só isso aí mesmo, uma quimera, igualzinho ao elefante do poema do Carlos Drummond de Andrade, outro brasileiro eterno naquela minha nação imaginada.

Pro alívio dos abjetos, era só um sonho. Um sonho tosco.

Como no poema do Drummond, amanhã recomeço.

Três meses

Três meses de 2017 já vão passando, e parece que 1º de janeiro foi anteontem mesmo, com todas as suas inspirações de esperança, todos os seus sonhos de um futuro bom, todas as suas promessas de um ano mais feliz. Em três meses, segundo a crença judaica e cristã, Deus faria 12 vezes a Terra e ainda 12 vezes as estrelas do céu e ainda 12 vezes todos os seres viventes do planeta.

Haveria, em três meses, 12 mundos com 12 Adãos e 12 Evas – e 12 serpentes estariam prontas pra desorganizar, com suas 12 maçãs, as vontades de Deus.

Em três meses, diz a ciência, um bebê saudável pode ganhar, em média, 2,1 kg e desenvolver, aos olhos nus da mãe, pequenas demonstrações de afeto e a coordenação dos braços e a das pernas e a das mãos e até a do pescoço.

Mas o Brasil, de lá pra cá, parece carente de serpentes que lhe inaugurem um novo prazer, e também parece desconstruído e mais magrinho aos nossos olhos nus de filhos deste solo tão gentil e maltratado por aqueles que inflam o peito falso pra apelidar nosso povo sofrido de varonil.

Vinicius de Moraes, no poema “Pátria minha”, doçura de poema, chamou o Brasil de “pátria tão pobrinha”. Estava certo. “Fonte de mel, bicho triste, pátria minha, amada, idolatrada, salve, salve!”, escreveu o poeta, “minha pátria sem sapatos e sem meias, pátria minha, tão pobrinha”.

Nossa pátria anda muito pobrinha mesmo – sobretudo, de gente digna que a conduza. Em três meses, ficou ainda mais pobre do que quando Pero Vaz de Caminha a descreveu ao rei Dom Manuel, o Venturoso, como terra habitada por índios de pele “parda e um pouco avermelhada”, com “rostos e narizes bem feitos”, que “andam nus, sem cobertura alguma”, e que “nem se preocupam em cobrir ou deixar de cobrir suas vergonhas”, com seus “cabelos lisos (…), cortados e raspados até acima das orelhas”.

Nossa pátria, que se tornou mestiça a partir da serpente que picou Caramuru e Paraguaçu, anda hoje triste e desolada, com seus narizes e rostos e cabelos refeitos, já distanciados do padrão europeu chamado por Caminha de “bem feitos e lisos” .

Três meses de 2017 trouxeram a ameaça de uma reforma da Previdência defendida por quem não conhece as dores do povo, além de outro punhado de desastres cotidianos cometidos pelo Temer, e ainda a conta já perdida de ministros suspeitos demitidos, e tudo mais que acrescentou pobreza ao dilapidado Brasil, tão carente de alegrias verdadeiras trazidas pelas serpentes genuínas de Deus.

O que teria feito em três meses mais de vida o bispo Pero Fernandes Sardinha se não tivesse sido capturado e devorado no dia 16 de julho de 1556, na Bahia, pelos índios caetés? Talvez nada. Talvez tudo – e sua participação na nossa História fosse outra. O que teria feito Dilma se não fosse crucificada no julgamento apressado e misógino daquela horda de famélicos de poder?

Talvez, como o bispo Sardinha, nada. Ou talvez, também como ele, tudo.

Três meses são muito tempo. Enormes saudades são construídas ou desaparecem no decorrer de seus 90 dias ou 12 semanas ou 2.160 horas.

Em três meses, a Lua dá três voltas em torno da Terra e completa seu ciclo quase três vezes e meia. Nesse período, em velocidade constante, um carro a 80 km/h percorreria 172.800 km. Isso é muito. São 18 vezes a distância entre Rio e Paris, por exemplo.

Três meses são o tempo de uma estação do ano. Um amor de verão dura três meses, ou se anuncia pra sempre na brevidade de um verão – e de quantos três meses e mais três meses e mais três meses e de quantos verões e primaveras e outonos e invernos se faz um “pra sempre”?

Um trimestre é o tempo de gestação de um filhote de leoa. É também o período em que um bebê de leopardo é elaborado no útero da mãe.

Em três meses, uma presidente é eleita e tem a reputação esmagada pelos facínoras da política. Amigos se reencontram, celebram e se despedem pra cumprir, quem sabe em mais três meses, a expectativa de um novo encontro.

Três meses são nove vezes mais que o tempo suficiente pro amadurecimento de um abacate colhido do pé ainda verde, segundo botânicos sabidos. Ou 83 dias mais que o necessário pra um mamão “de vez” ficar pronto pra ser comido.

Nos 129.600 minutos que compõem o percurso de três meses, os dias contados pelos ponteiros de um relógio passam como um sopro, trazendo e tirando vidas. Muitas felicidades surgem e desaparecem em três meses. Outras vêm pra morar silenciosas eternamente na alma e no coração da gente.

É mais ou menos a metade do tempo calculado pela Nasa pra uma viagem até Marte. É o dobro do trecho de existência que Pedro Álvares Cabral precisou pra chegar ao Brasil desde a partida de Portugal – ou também o dobro de tempo que a nau desgarrada da frota lusa levou na volta até Lisboa pra levar a Carta de Caminha a Dom Manuel.

Três meses são bem mais que o trajeto de vida necessário pra fazer quem bateu panelas se dar conta de que nem todas as frigideiras da cozinha são suficientes pra tirar do poder o Temer e sua legião abjeta do atraso.

A oferta de crediário sem juros mais favorável das Casas Bahia e suas concorrentes é a de três meses. Um campeonato estadual de futebol – vai firme, Flamengo! – dura menos de três meses. Três meses são tempo à beça.

Em três meses, talvez Dante alcançasse a Beatriz inventada pra ele por Dante Alighieri, o mesmo Dante pra quem “não há maior dor que a dor de nos recordarmos dos dias felizes”. E quantos dias felizes não são capazes de acontecer em três meses? Muitos, certamente, muitos mesmo.

Três meses são o tempo da proclamação de Adalgisa, a mulher inflamada e inflamável, que roubou há mil séculos o coração do cronista. E são ainda o tempo da reconstrução da esperança, e o tempo da confecção das emoções de uma paixão, e o tempo da cura dos efeitos colaterais da solidão.

Calcinhas no varal

De vez em quando, metido a feminista num corpo e num cérebro masculinos, o cronista digital tem a empáfia exagerada e a presunção infantil de achar que já aprendeu muito com as mulheres. O cronista é bobo alegre. Não aprendeu quase nada. Só acha que sim. Precisa aprender muito mais. Talvez nem viva o suficiente pra aprender tudo que necessita.

Ele adora repetir que foi moleque criado por mãe sozinha, num quintal com irmã e prima, e tia e avó, e outras tias emprestadas e vizinhas, e que conviveu com calcinhas penduradas no varal de casa durante a infância e a adolescência inteiras – e que ainda, depois disso, teve a sorte de ter duas meninas lindas no seu trio de filhos.

Eu, este tal cronista digital de meia tigela e meia pataca, aprendi à beça com todas essas mulheres, e ainda com outras que vieram depois, mas não assimilei o suficiente. Talvez nunca aprenda, nem nunca assimile.

Nesta quarta-feira, 8 de março, dia dedicado a elas, este cronista idiota se ressentiu do aprendizado que lhe falta. Percebeu que todo ensinamento recebido foi pouco aprendido, quase vão, e que ele precisa ainda saber muito mais.

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Até outro dia, o Brasil era governado por uma mulher. Vítima, entre outras agressões, de misoginia, ela foi arrancada do Palácio do Planalto num golpe parlamentar masculino e deu lugar a um vice, pra quem o papel das mulheres na sociedade é educar os filhos, cuidar dos “afazeres domésticos” e tomar conta do preço do supermercado.

Pelo visto, a mãe dele, com todo o respeito, falhou na missão de educá-lo. É pena.

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Dizer que o dia da mulher é todo dia é uma tremenda hipocrisia, muito comum entre nós, homens. Infelizmente, não é. Antes fosse.

Mulheres são discriminadas dia sim, outro também no mercado de trabalho, nas famílias, nas escolas, nas ruas. Muitas vezes, até por outras mulheres.

E quanto mais pobres e menos bancas, mais discriminadas são.

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A primeira feminista da era moderna no Brasil talvez tenha sido Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Num tempo em que meninas como ela eram criadas pra um papel que, mais de 150 anos depois, Temer ainda acredita ser o das mulheres, Chiquinha, filha de uma negra com um militar branco, bagunçou o coreto da sociedade carioca.

Mandou o pai e o marido machistas às favas e foi ser feliz com seu piano e os amores que escolheu.

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O Brasil seria mais feliz se um varal repleto de calcinhas fosse estendido do Oiapoque ao Chuí.

De presentes que o tempo nos empresta

Acho que, desde pequeno, ainda em Morro Agudo, quando conheci as primeiras dores causadas pela finitude, compreendi que o tempo é quem manda em tudo. O tempo traz, o tempo leva. Talvez por isso eu respeite tanto o tempo e exercite tanto a paciência e o entendimento das pequenas e grandes ocorrências.

Era assim que funcionava pra mim, e funciona até hoje, a compreensão da finitude das coisas, das pessoas, dos bichos – tantos bichos queridos o tempo me trouxe e depois tirou -, e também a das plantas e a do guaraná comprado pra acompanhar o almoço de macarrão com frango nos domingos da infância, e ainda a das dores e a dos prazeres, a de tudo.

Acho que o tempo pode ser medido, por exemplo, na quantidade do pó de café no pote – que vai diminuindo, diminuindo, diminuindo, até acabar.

Nunca consegui explicar essa teoria direito. Nem pra mim mesmo. Mas acredito que a equação seja mais ou menos esta, como algo dentro de um pote, cujo conteúdo a gente vai consumindo, consumindo, consumindo, até se esgotar.

Às vezes, no imprevisto de um gesto desastrado do destino, o pote se quebra antes do término do seu conteúdo tão valioso – e este conteúdo se esparrama pelo chão, e aí nos damos conta de que o tempo, na verdade, não nos dá nada, e por isso também não nos tira, porque, no fundo, ele, o tempo, apenas nos empresta.

No meu quintal em Morro Agudo, eu tive, por exemplo, um primo-irmão muito querido e valioso e imprescindível, que o tempo me emprestou por 18 anos, a partir dos meus 4 de idade, se minha matemática estiver certa. Mas um dia o tempo cismou e levou meu primo querido de volta – pra onde, não sei, mas levou.

Também tive avós maternos que o tempo deixou comigo por menos de 30 anos, até pedir de volta, e avós paternos que mal tive a chance de conhecer, tão curta foi a duração do empréstimo deles feito pra mim pelo tempo.

O tempo traz e o tempo leva, e contra isso nada é possível – tantos anos depois, é ainda no que acredito quando a finitude volta a me incomodar, ou a incomodar alguém muito próximo e muito amado, de quem o sofrimento passa a ser também o meu.

O tempo não se importa com os egoísmos humanos, que nos fazem querer pra sempre coisas e seres apenas emprestados, ou com o viço ou a necessidade do que ou de quem é absolutamente vital pra gente. Ele, o tempo, só resolve e dá, ou chama de volta pra sua reciclagem eterna quando bem entende.

O tempo, com suas idiossincrasias, torna o céu fechado e anuncia tempestade; ou se faz aberto e traz alegria e promessa; o tempo soberano, imparável, senhor do passar das horas, decide e determina à revelia de qualquer um de nós.

A gente fica feliz quando o tempo nos traz algo, mas fecha a cara pro mundo, triste, se ele nos arranca este algo tão bom. De algum momento não muito distante pra cá, já adulto, percebi a importância de homenagear o tempo todos os dias e aproveitar tudo que ele nos empresta, porque não sabemos quando ele vai pegar nosso presente de volta. Em algum instante, ele vai fazer isso, nem que seja no nosso próprio desaparecimento.

Toda essa teoria desimportante sobre a finitude, tema recorrente nas reflexões do cronista digital, que lembra um pouco autoajuda de balcão de botequim, está muito mais bem explicada no afoxé-canção “Oração ao tempo“, do Caetano Veloso, de onde vem a inspiração deste texto.

Como o Caetano ensina na canção, o tempo se confunde com a figura de Deus – não apenas o Deus cristão, católico ou evangélico, mas o Deus adorado por todas as religiões, e até o Deus de quem não tem adoração por nenhum Deus.

Santo Agostinho, o pensador cristão medieval, até hoje contemporâneo nas suas “Confissões”, escreveu mais ou menos assim: “O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu saberei o que é o tempo; mas, se eu o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não o saberei.”

Na minha percepção de leigo, creio que Santo Agostinho apenas quis dizer que o tempo definido agora não será o mesmo daqui a pouco, pois toma rumos diferentes a cada segundo e, volta e meia, desorganiza lógicas.

De uma maneira simplória, eu demorei um pouco pra entender que, no fim de tudo, o tempo é amigo, porque devolve alguma coisa depois de tirar outra. Nem que seja só a lembrança eterna da mão dada na aflição, ou só saudade do perdido – com todos os favores que este sentimento tão especial, a saudade, pode nos prestar.

Nem que seja, lá na frente, a lembrança do que foi bom, mas já sem o sofrimento pontiagudo da perda.

O tempo leva coisas embora da vida da gente, muitas vezes sem aviso prévio, mas, adiante, traz compreensão e renascimento. A falta que a gente sente de quem se vai, por exemplo, é imensa no primeiro instante. Às vezes, nem a suportamos direito. Mas, se a partida não envolve o rancor de uma vida tirada por outro alguém, o tempo sempre traz o dia em que a saudade doída e sem remédio se transforma numa lembrança alegre, que nos arranca um sorriso no meio da lágrima.

O tempo leva embora velhos amores, mas renova o nosso coração. Traz joelho ralado, tornozelo torcido, unha encravada, cobreiro no pé – mas, depois, doa cicatrizes que nos acompanham a vida toda e nos dão a certeza dos caminhos percorridos.

O tempo traz sustos, mas nos ajuda a domar os medos. Fabrica feridas ao mesmo passo em que elabora suas curas.

O tempo exige e nos faz seguir. “O tempo é só um vestígio da eternidade”, escreveu ainda Santo Agostinho.

O tempo, imandável e inordernável, só para na fotografia, e nos determina caminhar.

 

Quando eu me chamar saudade

O título aí de cima foi decidido com um pedido de licença às memórias do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, autores do samba tão bonito, tão bonito mesmo, que leva este nome. Samba tão delicado e belo toda vida.

A bênção, seu Nelson. A bênção, seu Guilherme.

Fui ao enterro do Nelson. Eu era um guri, estagiário da “Tribuna da Imprensa”.

O chefe de reportagem me mandou ao cemitério de Irajá fazer a cobertura. O som seco do surdo solitário da Mangueira, batendo, batendo, enquanto o caixão descia, aquele som nunca me saiu da lembrança. Nunca vai sair.

Com seu Guilherme, que morava ali em Bonsucesso, num prédio sem elevador, tive a sorte de conviver um pouquinho. Numa coincidência feliz pra mim, e que eu, de verdade, não merecia, recebemos juntos – ele, Alfredinho do Bip Bip e eu – o Prêmio Carioca da Gema, criado pelo meu amigo Lefê Almeida (outra saudade grande), no bar Carioca da Gema, na Lapa, em algum ano da primeira década de 2000.

Pro meu orgulho, orgulho do tamanho de um trem 33 da Central, uma foto de nós três, naquele momento do prêmio, permanece emoldurada numa parede do Bip Bip, o botequim do meu amigo-pai-irmão-filho Alfredinho, em Copacabana.

São lembranças que me vêm ao pensamento nesta madrugada de carnaval, como também me vem à cabeça agora uma saudade imensa dos meus amigos queridos de Morro Agudo – Pedro-Zeca, Totó, Fernando, Miguel, Cláudio, todos eles, que vivem em cada célula minha e sabem disso.

Quando eu me chamar saudade, quero, se puderem, todos eles perto de mim na despedida.

Quero também que os meus três filhos riam muito, muito mesmo, lembrando o que vivemos juntos – e que também riam muito, mas muito, lembrando o meu amor eterno e sem limites por eles, e o deles por mim.

Quando eu me chamar saudade, que nem o personagem do samba do Nelson Cavaquinho e do Guilherme de Brito, quero ser cremado e ter minhas cinzas jogadas por aí. De preferência, num carnaval.

Um pouco jogadas em Morro Agudo. Meus amigos-irmãos vão saber como fazer.

Quero também outro punhado atirado num canto da Rua Cardoso Júnior, se possível na presença dos meus irmãos desde sempre Janjão e Marcinho, e também na do meu amigo-parceiro Nuno. Se puderem.

Peço que se guarde, por favor, um punhadinho pra calçada do Bip Bip, onde fui feliz todas as vezes.

E mais um último punhado quero que seja depositado na gaveta das calcinhas de Adalgisa.

Pode ser tudo só na intenção. Mas, por favor, não me contrariem.

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Saudade é um sentimento bom.

Saudade é um sentimento que adormece ressentimentos.

Saudade, quando é correspondida, acrescenta sentimento bom ao que já é sentimento bom.

Quando a gente chora de saudade, a alma da gente sorri.

Saudade é o principal sintoma do amor.

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O que será que puseram naquela cachaça de gengibre no bloco de ainda há pouco?

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A beleza de imagem que ilustra esta pequena crônica de carnaval é de Candido Portinari (1903-1962).