Outro dia, no fim de uma sessão de “Eu, Daniel Blake” no Espaço Itaú de Cinema, na Praia de Botafogo, no Rio, uma mulher gritou “fora Temer!” como se buscasse um culpado pelo calvário do personagem-herói do bonito filme do britânico Ken Loach.
– Fora Temer!!!
Tudo que a gente faz é movido por sentimentos, eu pensei na hora. O sentimento que moveu aquela mulher deve ter sido raiva, ou um certo desapontamento conectado com a realidade dela mesma ou a de alguém querido, ou de revolta com o que ela tem visto de ruim ultimamente no Brasil.
Ou vai ver a motivação principal da moça foi só a vontade de se divertir mesmo, e rir um pouco, e fazer rir da situação geral e atenuar o desfecho sombrio do filme do Ken Loach.
Nem todo mundo na sala repetiu o grito dela, mas houve risadas, e ninguém se levantou pra defender o primeiramente, perdão, o presidente. Ou seja, ficou mais ou menos estabelecido, na saída do cinema, que a culpa pelo drama do Daniel Blake é do Temer mesmo.
O filme, como se sabe, conta a história do marceneiro sexagenário Blake, um analfabeto digital que luta contra a burocracia inglesa pra tentar receber o benefício do seguro-desemprego depois de sofrer um ataque cardíaco e ficar, por isso, afastado do trabalho.
Blake é um viúvo endurecido pela vida, mas de coração bom, e ajuda a puxar a cortina do Primeiro Mundo que esconde uma Inglaterra perversa e segregadora de seus pobres tanto quanto o Brasil. Na fila da Previdência Social britânica, lidando ora com funcionários robotizados e sem alma, ora com outros sensíveis mas impotentes diante do seu drama, ele conhece a mãe solteira Katie, que também padece com os dois filhos na busca por um benefício.
Os dois desenvolvem um amor mútuo, paterno e filial, e a interseção das suas duas vidas constrói a trama, que poderia ser rodada aqui mesmo, neste país do Temer e de milhões de Blakes e de Katies, onde já são quase 13 milhões de desempregados, reféns de uma Previdência desumanizada e agora às voltas com uma reforma ameaçadora.
O Brasil anda desinteressante e desesperançado, exatamente como o país descrito na história do Blake, e também já não parece causar orgulho, punido pela volta dos que não foram e pela nova ascensão dos sem-voto ao poder – e, como na narrativa do filme, o que nos salva são os sentimentos. Daí deve ter surgido o grito de desabafo da mulher no cinema.
Sentimentos bons como o do Blake pela Katie, e o da Katie pelo Blake, e ainda o dos filhos dela por ele, e o dele pelas duas crianças, enfim, sentimentos assim tornam o mundo mais interessante e nos socorrem nos momentos de maior dilaceração social e mesquinhez coletiva aguda, como agora.
Sentimentos como pareceu ser o da mulher no cinema são também libertadores. É deles, aliás, os sentimentos, que Daniel Blake e a jovem Katie e seus dois filhos se valem o tempo todo.
Às vezes, eu olho as pessoas na rua, e é como se estivessem todas se socorrendo dos sentimentos pra seguir em frente – a senhorinha no ônibus, a mocinha sentada logo adiante no banco do trem, o homem em pé no metrô, a balconista da padaria com seu olhar triste, a mulher de batom no táxi parado no sinal luminoso da esquina de Rua Alice com Rua das Laranjeiras, o ambulante na praia, o motorista do Uber, a caixa do supermercado, o garoto meio maluquinho que pede dinheiro no botequim, a multidão sem trabalho.
No fundo, somos todos Katie e Daniel Blake em busca de saciar nossas necessidades de algum benefício, de comer e beber e de amar um pouco. Andamos pelas cidades do país com olhos de quem deseja encontrar algo na esquina seguinte – os amores perdidos, os novos encontros, os recomeços, os meios de sobreviver, uma trilha do Ennio Morricone que nos console a alma sem afeto depois do incêndio no nosso Cinema Paradiso, a inocência do Forrest Gump, ou tudo isso junto, ou apenas um benefício previdenciário igual ao pretendido pelo Daniel Blake e pela Katie.
De um modo subjetivo, podemos encontrar isso num abraço ou numa troca de olhar, ou até na batida dos Tambores do Olokun, o bloco carioca de carnaval que une sagrado e profano no coração de quem ouve. Ou num passeio de mãos dadas pela noite do Aterro do Flamengo, ou na espera da criança que está pra nascer e mudar tudo nas nossas vidas, ou num telefonema inesperado, ou no grito de “fora Temer” dado por uma mulher desconhecida dentro do cinema.
Os sentimentos preenchem os vazios, amenizam ou potencializam as saudades, as faltas, a ansiedade pelo que ainda vem, a pressa e a lentidão que nos atrapalham ou nos põem no lugar certo na hora certa, como foi com Daniel Blake e Katie e com aquelas duas crianças.
Foi como eu compreendi “Eu, Daniel Blake”, e foi como ouvi pela primeira vez os Tambores do Olokun neste domingo de calor no Aterro do Flamengo.
Uma vez, uma mulher que eu nunca tinha visto na vida me pediu um abraço somente pra chorar com algum amparo. Ela só chorou e foi embora. Nunca esqueci o rosto dela.
Uma vez conheci um garotinho que vendia Embaré no trem (quase ninguém deve se lembrar do Embaré), a gente virou amigo, e logo depois ele morreu numa queda no trilho. Ele se chamava Isamir, e eu também nunca o esqueci.
Uma vez o Flamengo foi campeão do mundo, no Japão, e aquele dia ficou pra sempre na minha memória. Uma vez eu aprendi que os amores de verdade jamais acabam, mas suas dores, sim.
São assim os sentimentos. Sorrateiros, nos escolhem, não se deixam escolher. Na tela, favorecido pela coincidência de um encontro na fila da Previdência Social britânica, um sentimento mudou pra sempre a vida do Blake e da Katie.
Os sentimentos vagam soltos por aí, no ar, à espera de contaminar o nosso corpo e o nosso pensamento com suas consequências às vezes devastadoras, como talvez tenha sido com a moça que só queria um abraço pra amparar o seu choro; ou às vezes só libertadoras como o “fora Temer” da mulher indignada com a desdita do Daniel Blake na tocante história exibida no cinema.