Sei de muita gente que põe apelido no carro. Bolinha, Pérola Negra, Blue, Batman, Gatão, Jujuba, Caveirinha, Sem Bunda (juro, conheci um Sem Bunda!), Ovo (também conheci um Ovo!), Inácio, Gisele, Pum… sério, conheci um Pum. Era chamado assim pela namorada do dono porque o estofamento tinha um cheiro meio esquisito.
Ouvi relato até de um Fusca apelidado de Cocô, por causa da cor. O pessoal dizia: “Ih, o Fulano deve ter chegado, porque o Cocô está ali.”
O meu carro se chama Sujinho. Faz aniversário em novembro. Vai completar 20 anos. Está comigo desde que nasceu. É um amigão. Tem defeitos como todo amigo. Mas é um amigão.
Entre as pessoas que sabem do meu afeto pelo Sujinho, poucas não implicam comigo por causa dele. A maioria, sem coração, insiste:
– Troca “isso”!
Evito dar carona a quem fala mal dele a bordo, porque o Sujinho se magoa e, às vezes, temperamental, pifa. Tenho essa sensação. Não troco. Nas minhas conversas sobre ele com minha filha caçula, por exemplo, que é quem mais viaja no Sujinho depois de mim, até falamos, compungidos, sobre a finitude do meu amigão no futuro. Ela já me sugeriu:
– Pai, não vende, não. Coitado do Sujinho. Compra um novo e deixa o Sujinho na casa da vovó.
Minha mãe, ao saber da ideia, claro, não concordou. Aliás, até ela insiste, de vez em quando, num arroubo insensível:
– Troca “isso”!
Não troco. Meus três filhos cresceram dentro do Sujinho – muitas vezes, brigando no banco de trás por um lugar na janela, problema que só se resolveu quando a mais velha cresceu e pôde sentar do meu lado, no carona. Hoje, todos eles podem.
Os três são os únicos neste mundo que também amam o Sujinho – e, por isso, me entendem. Nós quatro já vivemos muitas aventuras estrada afora dentro dele. Sobretudo, em nossas idas a Morro Agudo, quando eu inventava, pros três, histórias compridas toda vida, muitas delas de suspense, que precisavam começar na partida e só terminar na chegada.
No início, era um truque pra mantê-los quietos, sem brigar. Mas a estratégia rendeu tão boas histórias que algumas viraram série, como “A princesa Radical e o príncipe Prudente”. Ou “As aventuras de Uéu e Negócio”, duas criaturas tão diferentes uma da outra – ambas de forma, cor, espécie e gênero indefinidos – que se acharam muito estranhas ao se conhecer. Mas, apesar das diferenças, se tornaram amigas e foram felizes pra sempre.
– Pai, o Uéu era o quê? Um bicho? E o Negócio, o que era?
– Ué, caramba! Uéu era um uéu, e Negócio era um negócio! – eu respondia.
Eles não perguntavam mais, ficavam encantados, e a história seguia. Algumas histórias faziam tanto sucesso que, até pouco tempo, eles ainda pediam pra eu transformá-las em livro. Devo isso ao Sujinho.
O Sujinho, comprado zero quilômetro em 36 prestações, ganhou este apelido quando ainda era bem novo, recém-saído da loja. Primeiro, porque eu ensinava pra filharada que não se deve jogar papel de bala, palito de picolé ou caixa de Toddynho na rua. Segundo, porque eu me esquecia de tirar o lixo do carro depois.
Terceiro, e principalmente, porque eu tinha o mau hábito de acumular coisas dentro dele – papelada, letras de música, livros, chinelos, CDs, contas pra pagar ou já pagas, cadernos de anotação já preenchidos, e o acervo ia se avolumando, ia se avolumando, ia se avolumando, até o dia, ou vá lá, até as reclamações ficarem maiores que a minha enorme paciência, e eu resolver fazer uma triagem e jogar fora o excedente imprestável.
Ninguém podia fazer isso por mim. Eu não deixava. Porque, na entropia reinante dentro do Sujinho, só eu poderia identificar um objeto ordinário de estimação ou uma anotação importante.
Eu me curei um pouco dessa mania. Mas, outro dia, ainda encontrei uma rodinha de carrinho do meu filho sob o tapete, uma nota de R$ 1 embaixo do banco e um maço vazio de Carlton no porta-luvas.
Nada de mais se o meu filho já não tivesse passado dos 20 anos de idade, as notas de R$ 1 não circulassem mais e o Carlton não existisse há uns seis anos. O fato é que o apelido pegou, e o Sujinho envelheceu com ele.
Dias atrás, fui chamado pra uma reunião de trabalho num lugar cheio de artistas e de gente famosa e elegante e bonita e influente, na Barra da Tijuca, e logo fui repreendido pelo meu grande amigo Janjão, dono de um carro possante, de que esqueci o nome:
– Marceu, você não vai lá com essa “coisa”, vai?!
Janjão acabou me emprestando o carro dele.
O Sujinho não é como se fosse da família. Ele é da família. É sucessor do Caidinho, um Fusquinha 1969, tão velhinho, coitado, que já comprei com um prego espetado no lugar do comando de seta.
Enlutado, precisei vender o Caidinho pro ferro velho porque uma roda ameaçava cair, as portas não fechavam mais, o assoalho apodreceu, desabou e deixava jorrar água e lama dentro quando eu passava nas poças. Esconjuro que o Sujinho tenha um fim assim.
Como não tenho garagem, e nem saio muito com o Sujinho ultimamente, não raro, ele fica empoeirado, pra zombaria da molecada da minha rua. “Lave-me, Dirceu!”, “Me dá um banho, Orfeu!”, “Socorro, Marcel!”, já escreveram com os dedos nos vidros dele.
Semana passada, flagrei meu amigo Janjão, que também é vizinho, fazendo a mesma coisa. Como se isso tivesse alguma graça: “Marceuzinho, tô limpinho!”
Quem assistiu e se encantou, como eu, com “The love bug”, título original de “Se meu Fusca falasse”, o divertido filme americano de 1968, dirigido por Robert Stevenson, talvez entenda meu sentimentalismo. Herbie, nome do Fusca do longa, fez tanto sucesso que virou série de Walt Disney nos cinemas.
Na história, Jim Douglas é um corredor veterano, dispensado pela sua escuderia por não ser mais um jovenzinho, como os concorrentes. No seu desapontamento, Jim vê um Fusquinha desprezado pelo dono de uma revendedora e compra o carro, que muda sua vida pra sempre.
Meu Sujinho não é um Fusca. Mas acho que tem alma de Fusca.
Quem desdenha dele ignora sua importância. O Sujinho, já citado aqui em uma ou duas crônicas, desperta interesse. Desperta, sim. Convidado pra uma palestra sobre meu blog e o da querida Gabriela Temer (o excelente jujunatrip.com, que recomendo), na quarta-feira, 13 de julho, na ABI, uma das perguntas que me fizeram, pra minha alegria, foi justamente sobre… o Sujinho do cronista digital!
– Assim como há a Lavagem das Igrejas do Bonfim, quando você vai promover a Lavagem do Sujinho? – uma gaiata da plateia quis saber.
Não foi a única menção. O tema da palestra era a busca de alternativas pra “monetizar” os blogs (em “bloguês”, como fiquei sabendo há pouco, “monetizar” significa “fazer blog dar dinheiro”). Outro engraçadinho, no auditório, sugeriu que o cronista digital cobre por determinados acessos a textos exclusivos e dê aos colaboradores, como prêmio, um… passeio no Sujinho!
Prometi pensar. A ideia foi bem recebida. Quem sabe?