Sobre sonhos que não se realizam

Daqui a pouco mais de sete meses, no dia 6 de dezembro, uma terça-feira de Lua minguante, como informa o calendário, vai fazer 40 anos que Jango morreu. Eu era uma criança num país subjugado pela ditadura militar, e nem sabia da existência dele. Muito menos soube da morte dele na época.

Entretido nas brincadeiras de um quintal vasto e cheio de crianças, entre goiabeiras, mamoeiros, uma amendoeira, dois abacateiros, um pé de abiu, um de romã, um de pitanga, ignorava o país real que prendia, torturava e matava quem ousasse desafiar seus subjugadores.

Hoje, à custa daqueles presos, torturados e mortos, meus filhos têm liberdade e conseguem saber o que vai no Brasil e construir sua própria opinião – pra minha alegria, convergente com a minha.

Naquele Brasil em que eu fui criança, naquele país em que Jango foi sepultado, não era assim. Na escola, não se falava dele, nem de seus sonhos, tampouco se informou de sua morte.

Derrubado da Presidência pelos generais de 1964, herdeiro político de Getúlio Vargas, Jango, como eu saberia mais tarde, estava no exílio da Argentina às 2h45 de uma madrugada de domingo pra segunda-feira quando seu coração parou de bater, fulminado por um enfarte.

Um enfarte que, segundo seus amigos, havia se elaborado aos poucos em seu peito no curso de mais de uma década de solidão no exílio.

Tinha 58 anos de idade. Havia chegado à Presidência da República aos 43. Com 35, já era ministro do Trabalho de Vargas. Desterrado de seu país, morava em Corrientes, província do município de  Mercedes, na Argentina.

Seu corpo atravessou a fronteira brasileira ainda na tarde de 6 de dezembro de 1976. Entrou no país pela Ponte Internacional de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, acompanhado por um cortejo de carros e sonhos. Sonhos que jamais viraram realidade.

O número redondo do aniversário de sua morte, em dezembro, será apenas uma coincidência. Um emblema pra quem, volta e meia, tenta imaginar o país que teria sido o de Jango e, por causa do golpe, não chegou a ser. O Brasil que só existiu no projeto – e, antes de nascer, foi abortado.

No dia seguinte ao do enfarte de Jango, Carlos Castello Branco, o Castellinho, com quem eu dividiria a mesma redação muitos anos depois, escreveu no “Jornal do Brasil”: “Poucos políticos foram tão cruamente julgados por seus contemporâneos, sobretudo depois de deposto.”

E ainda: “João Goulart se imaginou um pioneiro da revolução social do Brasil. E, certamente, deve ter morrido na expectativa de que a História será com ele mais amena do que seus contemporâneos.”

Hoje, a amenidade que a História dedica a Jango é a do esquecimento. Seu modelo de Brasil estatal se amofinou e desmoronou a cada privatização da era tucana. O trabalhismo que representava foi dizimado primeiro na ditadura e, em seguida, na própria democracia, eleição após eleição.

Antigos companheiros de luta, salvo um ou outro, estão mortos ou também esquecidos. Sua vida, sua trajetória, seu sonho, nada disso virou algo além de um túmulo na sua gaúcha São Borja. Sua memória, como ele próprio em vida, foi degredada e desterrada.

Grande proprietário rural, Jango governou o Brasil pensando na reforma agrária. Se daria certo ou não, jamais se saberá. Aquele Brasil não houve. Deposto, teve a intenção devastada.

O que de mais relevante ocorreu no setor agrário brasileiro desde sua morte foi o massacre de 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás, no Sul do Pará, em 1996. Fernando Henrique Cardoso governava o país. O massacre, cometido por 150 policiais militares, completou 20 anos no último 17 de abril.

Pois o Brasil do quadragésimo aniversário da morte de Jango conspira por um lugar curioso na História universal – o daquele que agrediu violentamente a democracia com base em recursos constitucionais.

O Brasil do quadragésimo aniversário da morte de Jango vive, enfim, a expectativa da derrubada de Dilma e da ascensão de Michel Temer.

Produtor de maus políticos em larga escala, este Brasil assiste ao julgamento da presidente como quem vê um filme já sabendo seu final. Um julgamento que, pro espanto da imprensa lá de fora, mas não a daqui, é conduzido justamente pelos mesmos maus políticos que esta terra não se cansa de produzir, não se cansa de produzir, não se cansa de produzir.

Dilma é julgada por transgressões fiscais, mas será condenada por crimes que não cometeu. Envergonha o silêncio da grande imprensa brasileira sobre isso. A grande imprensa brasileira estava amordaçada na morte de Jango. Agora não está. Diz o que quer. Ou deixa de dizer o que não quer dizer.

Quem queria o Brasil de Jango, quando havia Jango no Brasil, sabia o país que poderia vir a ser com ele. Quem quer o Brasil de Temer não parece se importar com o Brasil que será. Basta que não seja o de Dilma.

É previsível o país que será o de Temer. Ainda será injusto na distribuição de sua riqueza. Ou, provavelmente, será mais injusto. Continuará repartindo mal as oportunidades. Os pretos não deixarão de ser maioria nas prisões ou onde mais a indigência se faz presente.

Sem Dilma, e com Temer, a saúde pública não vai melhorar. Permanecerá indecente. O trem que sacode todo dia lotado de gente pobre ainda será assim. O país seguirá refém dos infortúnios que o assombram.

O fim da corrupção, desejo alegado por quem quer Temer na cadeira de Dilma, não vai acontecer. A corrupção, possivelmente, só terá menos visibilidade – porque já haverá um cristo na cruz pra salvar a classe política de todos os pecados.

Jango morreu sem satisfazer os seus sonhos e os de uma parcela de Brasil que punha fé em seu ideal. Morreu condenado sem julgamento formal.

Morto, não mereceu do então ditador Ernesto Geisel, que presidia o país naquele 6 de dezembro, sequer uma decretação de luto oficial. O mesmo Geisel cuja memória, por ironia, mereceria essa deferência do governo civil do professor Fernando Henrique ao morrer em 12 de setembro de 1996.

Jango, como tudo faz crer que acontecerá com Michel Temer, também chegou à Presidência depois de ser eleito como vice. Era o primeiro na linha de sucessão de Jânio Quadros, que renunciara em 1961. Mas era um tempo em que se votava também pra vice. Ele não era da chapa de Jânio. Ao contrário, na eleição, fora seu opositor.

Antes, já havia vencido a disputa pelo posto de vice de Juscelino Kubitschek com mais votos do que o próprio presidente.

Outra coincidência com Temer é que Jango também era casado com uma jovem primeira-dama muito bela, recatada e do lar. Dona Maria Thereza tinha apenas 21 anos quando o marido tomou posse.

Mas as coincidências param aí.

Às vezes, fazemos tudo pra conseguir alguma coisa. Ou achamos que fazemos. Não raro, em ocasiões de muita aflição, fazemos tudo errado, imaginando fazer o certo. Aí, se não conseguimos o objetivo, o resultado é uma sensação misturada de frustração, melancolia e arrependimento.

Visitando a História 40 anos depois, fica a sensação de que os contemporâneos de sonho de João Goulart foram todos assim. Nenhum de seus seguidores ou companheiros de luta chegou ao poder.

Os sentimentos são universais. Todo mundo estará sempre passível de sentir fome, frio, saudade, desejo disso ou daquilo. Agora mesmo, há uma multidão de gente ali fora, querendo coisas. Seja a satisfação de um sonho contrariado, seja a vitória do time do coração, seja um país mais justo, qualquer coisa.

Uns conseguem. Outros, não. Jango não conseguiu. Se conseguisse, talvez não houvesse hoje nada disso. Se conseguisse, talvez não houvesse hoje o sacrifício de Dilma, ou talvez nem houvesse Dilma, e talvez o Brasil fosse outro.

Mas é só um sonho. E há sonhos que não se realizam.

Já que ninguém me entrevista…

Em longa entrevista dada com exclusividade a si mesmo, o cronista digital dá de ombros pra sua falta de importância e conta tudo o que ninguém nunca quis saber dele, mas ele sente vontade de dizer. Da origem de seu nome ao que pensa sobre a crise do jornalismo impresso. Da TV Globo ao PT. Da tentativa de impeachment de Dilma às desditas do seu Flamengo. De sua participação nos blocos de carnaval com seus parceiros à sua autoavaliação como cantor de botequim. De sua paixão pela música a seu ofício de cronista. Do seu amor por Morro Agudo à sua adoração por Adalgisa.

Marceu, por que você decidiu se entrevistar? Você se acha importante?

Não, nem um pouco. Quem me inspirou foi a querida e talentosa Andrea Dutra, de quem sou fã, cantora, compositora e jornalista, que está aí na batalha como eu. Andrea teve esta ideia primeiro e fez isso no Facebook. Achei divertido e senti vontade de fazer também. Antes, pedi permissão a ela. Mas talvez tenha sido só pra ter a sorte de Adalgisa ler minha entrevista e, quem sabe, saber que eu existo.

Quem é Adalgisa?

Se você souber, me diga. Eu não sei. Já pensei que soubesse.

Como assim?

Adalgisa é uma mutante. Cada dia é uma. Às vezes, diverge de si mesma. É pudica e despudorada. Adora verde, mas se veste de vermelho. Está perto e longe. É Flamengo, mas é Vasco. Já não sei dela, nem quem é ela.

Você se sente mais cronista, mais jornalista ou mais compositor?

Hoje, eu sei que sou uma mistura desses três Marceus. Durante muitos anos, como empregado da grande imprensa, fui mais jornalista. Até porque era isso que pagava minhas contas. E foi o que me permitiu criar três filhos. Hoje, os ofícios se misturam. Faço reportagens pro site #Colabora e cumpro outros trabalhos jornalísticos pra quem me contrata. Além disso, componho, como sempre, e canto por aí pra ajudar nas despesas. E escrevo crônicas, o que tem me dado muita alegria, muita alegria. Eu não imaginava quanto a crônica estava represada em mim.

Não é pretensão se definir como cronista, condição de escritores tão importantes e que não estão mais por aqui, como José Carlos Oliveira, Rubem Braga?…

Talvez seja. Mas eu não sabia que era cronista. Até o dia em que o Villas-Bôas Corrêa, o grande jornalista, com quem tive a honra de trabalhar no finado “Jornal do Brasil”, onde fui chefiado pelo filho dele, o Marcos Sá Corrêa, bem, até o dia em que o seu Villas me disse, depois de ler um texto meu como interino da coluna “Coisas da Política”: “Marceu, não perca essa mão, agora que a encontrou; você é um cronista; não se esqueça jamais disso.” Aquilo ficou na minha cabeça. Porque tinha o peso da voz do seu Villas.

Que texto foi esse?

Foi um texto sobre o primeiro ano do Plano Real, em 1995. Chamava-se “Dramas de gente que vai levando”. Publiquei este texto depois num livro de crônicas. Falava da pressão sobre a classe média, que andava triste naqueles dias e não reclamava, porque o plano era tão comemorado pelos ricos e pelos pobres. O que eu escrevi, em resumo, foi que os ricos estavam felizes porque sempre estão felizes, e os pobres ficaram satisfeitos porque a inflação havia sido domada. Já a classe média estava juntando moedas pra pôr gasolina e economizando no iogurte dos filhos, pois a mensalidade da escola subia, o aluguel subia, e o salário, não. O texto teve muita repercussão na época e serviu de pauta pro próprio JB e pra imprensa em geral. Seu Villas me disse: “Rapaz, isso que você fez é crônica.” E eu nunca esqueci. Então, a culpa é dele.

Você é cantor?

Não. Sou compositor. Sou letrista de música popular. Meu ofício principal, na música, é cobrir melodias com letras, respeitando cada nota e a sílaba tônica de cada frase melódica.

Então, por que você canta?

Porque me solicitam, porque algumas pessoas gostam de me ouvir cantar, e porque, admito, eu gosto. E admito também que é uma maneira de pagar algumas contas nestes tempos difíceis.

Você é violonista?

Também não. Se violonista é quem é um profissional do violão, não sou um deles. Longe disso. Mas se violonista é só quem toca violão, eu sou. Toco pra mim mesmo desde adolescente. Cheguei a tocar em bar de Morro Agudo no início da juventude. Mas o que gosto mesmo é de tocar só pra mim, de aprender a tocar as músicas em que ponho letras. E, às vezes, arriscar compor uma ou outra melodia, o que não é meu ofício. Toco músicas de outros compositores pelo prazer particular de aprendê-las. E, ultimamente, porque me chamam pra cantar e eu sinto necessidade de incluir canções que não são minhas no repertório.

Você acha que canta bem?

Não. Só interpreto com correção e afinação.

Quem são seus parceiros na música?

O principal deles, pela quantidade da obra, é o Tuninho Galante. Eu e Galante temos mais de 120, 130 músicas em parceria. Temos prontas as canções de três projetos de musicais. Um se chama “Sinfonia da vida a dois”, com músicas que falam da vida em comum. Outro é o “Fé brasileira”, sobre a religiosidade sincrética do Brasil. O terceiro é o “Minha escola vai desfilar”, que propõe um desfile imaginário de várias escolas de samba do Rio, algumas que nem no Grupo Especial estão. Uma delas, a minha Imperial de Morro Agudo.

E seus outros parceiros, quem são?

Tenho o maior orgulho de ser parceiro de um cara como o Lucas Porto, por exemplo, com quem já fiz várias músicas. E também do Luiz Flávio Alcofra e do Marcelo Menezes. Lucas, Luiz Flávio e Marcelo são grandes violonistas. Estão entre os maiores do Brasil. Sinto muito orgulho também  de ter como parceiros a Nilze Carvalho, o João Pimentel, o Nuno Neto, o Márcio Almeida (o Márcio Hulk), o Márcio Dornelles, o Ney Conceição… Ney é um dos maiores contrabaixistas do mundo. É meu parceiro mais recente. Compus também com Teresa Cristina, com meu saudoso amigo Lefê Almeida… E, na adolescência, em Morro Agudo, meus amigos Pedro Cavalcanti, o Zeca, este aí meu irmão da vida toda, e Moacir Soledad, musicaram poemas meus.

Você também fez sambas pra vários blocos de carnaval do Rio…

Sim. Compus pra quase todos da Zona Sul. Nesse particular, meus principais parceiros sempre foram João Pimentel, o Janjão, meu irmão, que faz isso como nenhum de nós, e o Lefê, outro amigo querido e compositor genial de blocos, que já se foi. Além deles, já compus com Eduardo Gallotti, Mário Moura, Samir Abujamra, Marco Gerard, Jorgito, Orlando Magrinho, Alexandre Medeiros, Cláudio Henrique, Fábio Nascimento, Fernando Molica… Devo estar esquecendo alguém importante.

Como você analisa a crise trazida pela internet ao jornalismo, sobretudo o impresso?

O jornalismo está em crise por razões maiores que a internet. Está em crise porque cedeu à tentação capitalista além do limite que o bom jornalismo permite.

O que isso quer dizer?

Quer dizer que a pressão da internet é sobre a venda da revista e do jornal impressos. Hoje, as pessoas têm de graça no computador ou no celular um conteúdo a que, antes, só tinham acesso pagando. Por isso, os sites de jornais criam cada vez mais barreiras de navegação. Você só consegue acesso a determinadas matérias se pagar por isso. Acho que a imprensa acordou tarde demais pra essa pressão. E o efeito é a demissão em massa nas redações.

Mas o que é a tal “tentação capitalista”?

É a tentação de sacrificar o bom jornalismo em prol da manutenção do nível de lucro. Em sua lógica capitalista, os patrões da imprensa não investem mais em grandes reportagens, por exemplo, que custam caro. Promovem a editores profissionais que poderiam ser seus melhores repórteres. E erram ao abrir mão de jornalistas experientes. O conteúdo que os grandes jornais têm produzido, por pressão do que chamo de “ditadura do clique”, é, em geral, fraco e pouco profundo. As melhores análises do que ocorre hoje no Brasil passam longe da grande imprensa. A grande imprensa nem reportagens de impacto produz mais. Nesse caso mesmo da Lava-Jato, ela parece apenas reproduzir as ações do juiz Moro e as investigações da Polícia Federal. A imprensa não parece investigar, nem descobrir nada por ela mesma, por seus repórteres. Vivemos a “ditadura do clique”. A guerra entre os jornalões, hoje, é por mais “cliques” em seus sites, e não por um furo espetacular, como já foi um dia. E o jornalismo vai virando entretenimento…

Isso não é ressentimento seu, por estar fora da grande imprensa neste momento? Por ter sido você mesmo uma vítima desta crise?

Já pensei nisso. Mas, creia, falo essas coisas de coração limpo e com a serenidade de quem teria completado no dia 1° de janeiro 30 anos de carteira assinada na grande imprensa. Não acho a grande imprensa um demônio. Acho que ela sofre no redemoinho do furacão da crise, cede ao que não deveria e passa por uma transição. A imprensa é uma instituição importante. Torço pra que ela se revigore. O jornalismo é um sacerdócio, como me definiu certa vez o Ali Kamel, diretor da TV Globo. Ali, que é brilhante, me disse isso por e-mail num momento em que eu andava desencantado com o jornalismo. Ele tinha razão. Às vezes, os sacerdotes erram. Ou não conseguem rezar as cerimônias adequadas. Mas, sem a grande imprensa, não teríamos a História e não saberíamos nada que nos ajudasse a formar nossa própria opinião a respeito do que vai no Brasil e no planeta. Mesmo quando divergimos dela.

E o papel da TV Globo?

Vejo o Grupo Globo, não só a TV, mas sobretudo ela, a TV, como mais uma vítima dessas duas crises, a da imprensa e a do Brasil. Evandro Carlos de Andrade promoveu uma importante reforma tanto no jornal “O Globo” como na TV Globo. Uma reforma de resgate de credibilidade focada numa certa parcela de leitores, pra desvincular a marca Globo do seu passado de engajamento à direita, pra desvincular a marca Globo da sustentação dada à ditadura militar. Pois a crise política de hoje pôs a Globo de novo na ciranda das críticas e cantorias das manifestações pró-Dilma. O Grupo Globo quer fazer crer que o processo de impeachment da presidente se justifica na roubalheira do PT. Mas a razão legal do processo de impeachment não é essa. São as malandragens fiscais do governo. Esse pecado, que não é só do Grupo Globo, mas de toda a grande imprensa brasileira, já é cobrado pela imprensa internacional, e isso faz mal à Globo, sobretudo, e pode comprometer a importante reforma de Evandro Carlos de Andrade.

Por que você chama o impeachment de golpe, se ele é previsto na Constituição?

Porque não há um crime que o justifique. Dilma, se for arrancada da Presidência, terá sido por motivação política. E isso me parece inconstitucional e injusto. Me surpreende que nenhum ministro do Supremo Tribunal Federal diga isso, que parece tão óbvio. Temo que a História cobre satisfações um dia de todos os personagens que participam desse desmonte da Dilma. Não se pode tirar alguém da Presidência só porque não gostamos dessa pessoa. É preciso que ela tenha cometido um crime. Dilma está sendo imolada por crimes cometidos pelo PT. O momento de se vingar do PT, pra quem não gosta dele, será em 2018. É o que penso.

Marceu, erram muito seu nome. Não é que ele seja feio, mas… Qual a origem dele?

Minha mãe queria que fosse “Marcéu”, mar + céu. Ela me teve longe do mar, e também não devia estar olhando as estrelas pela janela da sala de preparação, onde nasci (sim, porque eu fui ligeiro, não houve tempo de ela chegar à sala de parto). São coisas do meu subúrbio, onde as pessoas escolhem os nomes dos filhos em obediência a uma lógica lúdica pessoal.

E por que virou “Marcêu”?

Fui “Marcéu” até a 4ª série primária, quando minha mãe, então minha professora na Escola Municipal Souza e Melo, no Cacuia, distrito de Nova Iguaçu, decidiu me transferir de colégio por absoluta incompatibilidade minha com o papel duplo de aluno e filho.

Como foi isso?

Uma vez, estava uma bagunça danada na sala, e ela virada pro quadro, escrevendo. De repente, tornou a olhar pra turma e deu uma bronca enorme, com os olhos fixos em mim, como se eu fosse o culpado de tudo. Quando novamente se virou pro quadro, eu cochichei com meu colega de carteira (na época, havia aquelas carteiras duplas): “Parece maluca!” Ela ouviu, me mandou sair de sala e eu nunca mais voltei. Fui parar no Colégio Estadual Professor Márcio Caulino, em Austin, uma estação da Central do Brasil adiante, onde a professora Sônia, logo no primeiro dia, ao fazer a chamada, me chamou de “Marcêu”.

Como você reagiu?

Não reagi. Fiquei quieto. E ela chamou de novo: “Marcêu!” E de novo e de novo e de novo. Até que me repreendeu: “Menino, você não vai responder?” Eu expliquei: “Professora, meu nome não é Marcêu, é Marcéu.” Ela então foi ao quadro e explicou pra turma toda que, se fosse “Marcéu”, teria um acento agudo no “céu”. Não havendo a acentuação, era “Marcêu”. A turma inteira caiu na gargalhada, e eu virei Marceu pra sempre. Mas tenho amigos que me chamam de Zeca desde menino, porque, pra agravar minha situação, meu nome é composto, Marceu José. Isso porque nasci no fim de março, mês de São José. Se nascesse em abril, seria Marceu Jorge. Assim me disse minha mãe.

Você fala tanto de Morro Agudo… Isso não é marketing?

Se for, digo “obrigado” a quem pensa assim. Porque não passei nessa prova, a do marketing pessoal. Quem me conhece sabe que sou uma negação neste quesito e sofro as consequências disso. Falo de Morro Agudo porque é minha pátria sentimental. Em Morro Agudo, mora minha família, moram meus amigos e algumas das minhas lembranças mais felizes. Estou sempre lá. Sempre. Morro Agudo é um lugar feio. Já me criticaram ali por dizer isso. Mas não consigo chamar Morro Agudo de bonito. Bonita é a paisagem humana que vejo em Morro Agudo.

Alceu, perdão, Morfeu, e o seu Flamengo, hein?

Bom… Seu tempo de entrevista acabou.

A mulher ideal

Todo homem sonha ter Adalgisa, a mulher impossível. Mas Adalgisa não se deixa ter. Só finge que se deixa. Porque é Adalgisa, quando quer, que os tem.

Nós, os pobres homens que adormecemos com ela, mas não dormimos com ela.

Adalgisa não é uma. São muitas. Tantas que é impossível não vê-la na imensidão de sua existência. Está em todos os lugares. Hoje mesmo eu a vi. Ela não me viu. Ontem também. E anteontem. E será assim amanhã. Adalgisa nunca me vê.

No ponto mais remoto da Terra, lá está Adalgisa. No mais barulhento, também está ela. Notívaga, diverte-se nos bares apinhados de Las Ramblas. Diurna, pisa em estradas particulares da Grécia. Tardia, é a última a chegar à ópera. Festeira, brilha no samba e no fado.

Bela e perfeita, tão brasileira como uma peça cantada de Villa-Lobos e tão universal quanto o prazer que a mesma ária desperta. Girassol aberto de Van Gogh, flor reconhecida em todos os continentes.

Adalgisa é do mundo na multiplicidade do seu encantamento. Anda apressada pelas bordas da Lagoa Rodrigo de Freitas e vai a festas no Leblon. Silencia Montmartre e distribui esmolas em Notting Hill. Sua fama emudece os homens do SoHo, sua chegada interrompe o falatório na estação de metrô da Consolação.

Adalgisa são várias. Não cabe numa mulher só. Expõe sua beleza nos palcos do seu teatro. Excede em virtudes na sua Marquês de Sapucaí. Expande seu encanto além dos limites de seu corpo nas areias de praias espetaculares – algumas eu nunca vi; não vejo as praias; mas vejo Adalgisa.

Ela, a mulher ideal, que só pertence a si mesma. Ela, cuja presença provoca dentro da gente mais barulho do que o gozo coletivo de um gol.

Adalgisa, que já foi Nery, descrita nos versos de Drummond. Adalgisa, que já foi Colombo. Adalgisa que não depende de poetas. Adalgisa que não se encerra em nomes, nem no seu próprio.

Adalgisa que já fez 100 anos e mal tem 21. Adalgisa de idade imprecisa e de pouca importância, que olhos humanos não conseguem quantificar.

Ela, que o tempo não aniquila. Ela, que não fenece, protegida do contar das horas, dos dias, dos anos, dos séculos. Ela, que todos os homens esperamos. Ela, que espero.

Será pra sempre Adalgisa, com seu hálito bom de moça perfeita a me alegrar só de vê-la. Adalgisa de curvas em que não toco, mas meu coração desgovernado se perde. Curvas em que os corações de todos os homens se perdem.

Ainda ontem, chamava a atenção de tarde em Paquetá, de noite na Urca. Na próxima manhã, deve caminhar por Ipanema, transitar pela Pampulha, vagar pela Rua da Praia. Atrairá, quem sabe, os olhares de todos os homens do Morumbi – e os entristecerá por não tê-la.

Fará o mesmo em outras lonjuras. Ela, que me põe febre nos olhos.

Adalgisa, com seu feitiço jovem e ancestral, mora no meu peito e no meu pensamento. Faz troça de todos os desejos que desperta. Inclusive do meu. Sobretudo do meu.

Fecho os olhos e a vejo na exatidão do que ela é.  Às vezes, de cabelos curtos. Às vezes, longos. Mas estendo os braços e não a alcanço.

Adalgisa ri de mim sem saber, e nem sabe que sei dela. Sem supor que eu existo, faz companhia à minha solidão.

Está nas minhas lembranças desarrumadas, salta das minhas gavetas e dos meus armários. Adormece na minha expectativa de futuro. Esconde-se no meu sonho. Está nos cheiros que acredito sentir das estrelas no meio da noite.

 

Das flores e dores do abril de 2016

Lá da ralé de onde eu venho, sonhar custava muito barato. Aliás, não custava nada. Era de graça. Eu sonhava tanta coisa.

Pilotar avião. Dirigir ônibus. Virar gigante. Jogador de futebol. Reger orquestra como o Carlos Gomes bigodudo das figuras do encarte de um compacto simples de sua ópera “Guarani”, que não sei como foi parar lá em casa.

Desde bem pequeno, quando eu ainda era aluno do Movimento Popular de Alfabetização, espécie de Mobral de Morro Agudo no meu tempo de criança – e pra quem não conheceu o Mobral, perdão, fica difícil explicar agora, prometo fazer isso depois -, bom, desde garoto bem miúdo, lá no areal da Tenda Mirim, onde ficava o MPA, sigla da escolinha onde aprendi a ler, desde aqueles dias, enfim, eu guardo no meu coração essa verdade. Sonhar não custa nada.

Talvez por isso eu tenha me emocionado tanto com o samba da Mocidade Independente de Padre Miguel no carnaval de 1992, quando a escola foi vice-campeã. “Sonhar não custa nada, não se paga pra sonhar…” – ainda ecoam na minha memória os versos de Dico da Viola, Moleque Silveira e Paulinho Mocidade.

Aquele samba me marcou tanto que, mais de dez anos depois, no meu ofício de letrista de música popular, eu faria uma citação a seus versos numa parceria com o violonista, compositor, arranjador e meu querido amigo Tuninho Galante.

Também desenvolvi, naquele pedaço tão importante da minha vida, um senso de justiça que nunca me abandonou. Havia garotos mais desafortunados do que eu naquela algazarra da rua de terra batida. A gente caçava rãs e, quando chovia e a vazão aumentava, até se banhava nas águas do mesmo “valão”, que era como, pra nos alertar, nossos pais e mães se referiam ao igarapé contaminado.

Corta pra esta segunda-feira, 18 de abril de 2016, um dia depois de a Câmara dos Deputados ter aprovado o prosseguimento do processo de impedimento da presidente Dilma.

Pois eu acordei com esta equação de sonho e senso de justiça inundando o meu coração. Durante o dia todo, um travo cismou na minha garganta. Demorei a me dar conta de que essa sensação era fruto da mistura de sonho e senso de justiça dos meus tempos de garoto no MPA e de brincadeiras no valão.

Em nome de Deus, da família deles, dos seus conterrâneos, dos seus estados, das suas cidades, das boquinhas que muitos já tiveram no governo e esperam ter de volta, em nome do marido-prefeito que seria preso na manhã seguinte, acusado de desviar dinheiro de hospital de pobre, em nome de suas pecúnias e seus egoísmos, por fim, 367 deputados tentaram destroçar meus sonhos e meu senso particular de justiça construídos desde os tempos de criança no areal do MPA.

Pelo menos meus sonhos. Pelo menos meu senso particular de justiça.

Um dos sonhos que tentaram matar foi o de um país sem valões e sem muros e com possibilidades pra todos.

Valões como aquele de Morro Agudo. Muros como os que foram erguidos, num simbolismo dolorido, na Praia de Copacabana e na Esplanada dos Ministérios, neste 17 de abril, pra separar as metades a favor e contra o impedimento da presidente.

Foi nesse sonho bobo que eu sempre votei. Mesmo sem, num sentido freudiano, realizar essa intenção. Sujeito comum, sem filiação partidária, foi nesse sonho boboca e irreal que eu sempre votei.

Não votei sempre no Lula, na Dilma ou no PT. Mas nunca votei em nenhum daqueles 367 deputados e deputadas, que, em nome disso ou daquilo, gritaram “sim” pra um processo cuja motivação política conta com o incentivo da mídia dominante – que, talvez sem se dar conta da gravidade de seu enxovalhamento, é cada vez mais demonizada nas redes sociais, cada vez mais, cada vez mais.

Um sonho que já andava avacalhado e corrompido pelo próprio PT na sua desoladora metamorfose.

No poder, o PT dos jingles dos tempos da “Rede Povo”, aquele PT do “será que a gente é que é diferente ou será que os outros são tão iguais?”, o PT do “se a honestidade é a marca da gente, ser diferente é bom até demais”, aquele PT que me emocionava se transformou num quase siamês do PMDB ou do PSDB e de tantos “bês” do variado cardápio partidário brasileiro (recomendo a leitura do excelente artigo de Aydano André Motta no site #Colabora, em http://goo.gl/OUgG1A).

A ponto de ter enfiado na enrascada de agora, num só embrulho, Dilma e o meu sonho bobo e apartidário de nação mais justa e sem muros e sem valões.

Nenhum daqueles 367 deputados favoráveis ao impeachment me representa. Nenhum. Também são poucos, muito poucos os que me representam entre os 137 que votaram “não”.

Mas constatei, ao longo da segunda-feira, que meu sonho saiu vivo. E que, se acordei com um travo cismado na garganta, é que havia prevalecido no meu coração o senso de justiça.

O mesmo senso de justiça moldado no coração do garoto que corria descalço na areia branca do terrenão do MPA e brincava com a criançada da vizinhança no valão.

Compreendi a razão de ter me ofendido tanto o festival cínico do “sim” na Câmara dos Deputados, na tarde-noite do domingo, num justiçamento presidido com a peçonha desfaçatosa de quem, como tudo indica, deveria estar preso.

Fiquei orgulhoso e feliz ao lembrar que, como repórter, já fui processado mais de uma vez por Eduardo Cunha, em sua tática de intimidar jornalistas. Fiquei orgulhoso e feliz ao lembrar que não fui condenado em nenhuma. Orgulhoso e feliz ao lembrar que, na única ação convertida em julgamento, ele se recusou a apertar minha mão.

Fiquei orgulhoso e feliz, finalmente, ao perceber, mais uma vez, o que penso realmente disso tudo.

Penso que não pode ter meu apoio – embora meu apoio não valha nada – o justiçamento de uma mulher sobre quem, até agora, não recaiu um só crime dos muitos atribuídos a seu partido; que não pode ter meu apoio um justiçamento engrossado pelo “sim” de um deputado fanfarrão, Jair Bolsonaro, sempre ele, cuja justificativa de voto foi apresentada como homenagem a um dos maiores torturadores da finada ditadura militar. Não pode. Não, não pode.

E o dia seguiu, e o dia se desfez, e com ele se foi o travo cismado na minha garganta.

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Agora que seu pinhão-pajé mágico da Amazônia entrou na segunda infância e azaleias floresceram no outono do seu pequeno quintal, o cronista digital pretende se ausentar um pouco deste assunto.

Vai voltar, talvez, a falar de plantas e flores, de música, das dores do Rio Xingu, das malvadezas cometidas contra os povos da floresta, a falar, quem sabe, do seu Flamengo, dos desvãos do seu pensamento, e só retornar ao tema quando seu coração pedir.

O Brasil que vai acordar na segunda-feira de manhã

Certa vez, quando eu ainda não tinha idade pra compreender coisas assim, uma mulher mais velha e inalcançável me ensinou que ternura não é igual a amor. Nem igual a paixão ou desejo ou mesmo banzo.

“Ternura é ternura”, ela me disse, quase imaculada, querendo me fazer crer que a ternura é o mais singular dos sentimentos.

“Ternura é como picada que contamina. Uma sensação que logo se esvai, mas insemina dentro de você alguma coisa, quem sabe pra sempre.”

Hoje eu sei que é preciso passar da metade da vida pra se entender a matemática do tempo. Tempo é como ternura. Só depois que passa e nos contamina consegue nos fazer aprender o valor dos segundos no seu tique-taque incessante, seus segredos, seus códigos, suas mensagens.

Os últimos 27 anos, por exemplo, passaram rápido como navalha na minha carne. Passaram rápido como gozo que nos crispa a expressão e modifica os sons do nosso corpo na brevidade do seu acontecimento.

Assim foram os últimos 27 anos, com tudo que puderam conter – meus beijos e carícias dados e recebidos, minhas dores e meus pavores, minhas perdas e meus ganhos, minhas feridas e meus contentamentos. Os grandes e os pequenos acontecimentos.

Vinte e sete anos são o tempo que passou tão breve no Brasil desde a primeira eleição pra presidente da República, depois dos 21 de ditadura militar. Primeira eleição presidencial da vida de tanta gente. Primeira da vida de milhões de brasileiros. Primeira da minha vida, do jovem que eu fui, tão cheio de sonhos de futuro.

Há 27 anos, ainda estava fresca na minha memória e no meu coração a tinta da lembrança do show do 1° de Maio de 1981, no Riocentro, aquele mesmo, o da bomba, quando o adolescente que eu era saiu de Morro Agudo pra assistir à cena do quase-atentado ao chegar ao estacionamento com os amigos Severino e David.

O nosso medo. A correria. O Puma cinza metálico explodido. As vísceras expostas do capitão Wilson Machado. A gente sem entender nada direito. A gente entendendo tudo.

Há 27 anos, ainda mais fresca estava a tinta da recordação do jovenzinho que se posicionara no meio da multidão do Comício das Diretas, na Candelária, naquele 10 de abril de 1984, eu já estudante do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, o meu querido Iacs. 

Ferida e gozo. Tanto gozo e tanta ferida de lá pra cá.

O Brasil que elegeu Fernando Collor, há 27 anos, quando eu já era jornalista e trabalhava no “JB”, não é o mesmo hoje. Nem “JB” há mais.

Nem são os mesmos, hoje, os meninos e meninas de caras pintadas que, naqueles dias, ganharam as ruas e ganharam mais as ruas e mais um pouco as ruas e um pouco mais e ainda mais e ainda mais até conseguirem o impeachment do presidente escolhido por muitos de seus pais e mães.

Aqueles meninos e meninas de ontem são os pais e mães de agora, e já não se sabe mais o que querem, o que pensam eles e elas e seus filhos e filhas, aonde todos querem chegar. Parecem uma multidão dividida. Metade não quer o impeachment de Dilma. Metade quer.

O que a metade ansiosa pelo impeachment espera do Brasil que vai acordar na segunda-feira, 27 anos depois da primeira eleição presidencial pós-1964? Espera que a posse do vice Michel Temer determine o fim da roubalheira? Temer, um político sem voto, que só conseguiu o mandato de deputado federal, em sua última disputa, em 2006, graças ao quociente eleitoral do seu PMDB, em São Paulo? Essa metade espera a prisão do Eduardo Cunha? Espera a volta dos tucanos?

Ou espera apenas a imolação de Dilma pra punir Lula e o PT por terem traído e corrompido seu discurso? Isso é justo?

Quando Collor passou por processo igual, a Constituição de 1988 ainda não havia completado quatro anos. Collor foi afastado quando se comprovou que suas despesas particulares eram pagas com dinheiro arrecadado num esquema imundo de corrupção montado por seu ex-tesoureiro de campanha Paulo César Farias.

E Dilma, o que roubou? A esperança de alguns? Quem sabe até a minha? Mas isso lá é motivo pra impeachment, pra uma decisão tão grave e capaz  de dividir ainda mais as duas metades do país já tão exaltadas?

Duas metades que se sabe lá o que vão fazer uma com a outra a partir da segunda-feira de manhã. Ou talvez já na noite deste domingo.

Vinte e sete anos depois, o Brasil está melhor. Até quem não gosta ou já gostou e não gosta mais do Lula e do PT precisa reconhecer. Hoje, os pobres conseguem comer mais. A fome e a miséria estão domadas. A desigualdade é menor. Todos os setores da enorme composição da sociedade brasileira, com seus agentes econômicos e políticos, ganharam mais. Até quem não devia ganhou mais. Sabemos quem.

Dilma faz um governo ruim que ficou pior com a crise incendiada por Eduardo Cunha e seus iguais. Num sentido mais do que figurado, ele, sim, Cunha, parece ter cometido um crime de responsabilidade contra a Nação ao aceitar, como presidente da Câmara, a abertura deste processo sem dolo que o justifique.

E os deputados que o ajudam a se vingar de Dilma, dizendo “sim” ao impeachment, são seus coautores e deveriam todos, de alguma forma, também ser punidos por isso. Eles, sim.

Este processo parou o Brasil. Agravou o desemprego. Comprometeu ainda mais a economia. Separou amigos. Esgarçou ânimos. Incentivou as baratas e os ratos com mandato que infestam o Congresso Nacional. Aumentou a febre dos que não têm voto em seu desejo doente de poder.

Fez mal até mesmo à TV Globo, que, tanto tempo depois de ter iniciado uma reformulação de imagem, está aí de novo prisioneira dos versos entoados nas manifestações. “O povo não é bobo…”

Dilma cometeu pedaladas fiscais que permitiram fingir que estava tudo bem com o Brasil, e assim se reeleger. As tais pedaladas, segundo o Tribunal de Contas da União, foram cometidas pra financiar, entre outras coisas, o Bolsa-Família, o Minha Casa Minha Vida e a redução de juros pra geração de empregos.

Isso é errado? É. Mas todos os seus antecessores não fizeram igual – inclusive FH e até mesmo Lula? 

E por que eles não sofreram processo de impeachment? E não foi também o que fizeram 16 governadores? E por que também eles, governadores, não passam por constrangimento assim?

A democracia brasileira, devolvida do cárcere onde foi mantida por 21 anos à custa de muito sofrimento, muito sofrimento, precisa de cuidado neste momento grave. Seu resgate não teve preço. Nem toda a bufunfa que estaria na Suíça em supostas contas de Eduardo Cunha seria capaz de pagar por ela.

 

Brizola ‘fala’ do pedido de impeachment de Dilma

O cronista digital revisitou o arquivo particular do tempo em que atuava como repórter político, sobretudo no “Jornal do Brasil”, e, levado por uma alucinação, reentrevistou Leonel Brizola (1922-2004), o velho trabalhista gaúcho, governador do Rio Grande do Sul uma vez, do Rio de Janeiro duas. No armário reaberto de sua memória, Brizola disse a ele o que pensa do pedido de impeachment de Dilma, das infelicidades do PT, do protagonismo de Eduardo Cunha, de Michel Temer, de Aécio Neves, do juiz Sérgio Moro, do PMDB, da TV Globo, da imprensa em geral, das manifestações pró e contra o governo, do “Big Brother Brasil”, da seleção do Dunga, da novela das oito e de mais um pouco de um pouco mais.

Governador, o senhor tem acompanhado o atual momento do Brasil?

Veja. Devo te dizer que tenho acompanhado com muita preocupação tudo isso que aí está. A rigor, o que se está tentando construir, hoje, no Brasil, é um golpe.

Juristas renomados têm lembrado que o impeachment é previsto na Constituição. Por que, então, seria um golpe?

São vozes contaminadas por conveniências de certos grupos políticos. Pergunte a esses juristas em quem eles votaram em 2014. Veja bem. A presidente Dilma foi eleita com 54,5 milhões de votos. Tirá-la do poder só porque não gostam dela, isso não é um golpe? Aí vem a TV Globo com seus porta-vozes e diz: “Ah, não, não é golpe, não, porque o impeachment está previsto na Constituição.” Mas o que há, de fato, contra Dilma? A rigor, francamente, não há nada! Então, tirá-la é golpe.

O senhor continua em combate com a TV Globo, mesmo daí?

Não diria isso. Depois da minha morte, eles lá me deram uma trégua. Já haviam me dado antes um pouco. Os velhos e os mortos costumam ser contemplados com esses favores, não é verdade? São os favores da idade e, agora eu sei, também os da morte. Mas compreendo que este momento vivido pela presidente Dilma é muito parecido com aqueles dias de perseguição implacável que sofri deste império Globo. A Globo, honestamente, com todos os seus tentáculos, parece cumprir o último quarto de hora de seu domínio. Daqui onde estou, vejo grandes mudanças à vista. Grandes mudanças. Os impérios, todos eles, nascem, prosperam e fenecem. A História tem muitos exemplos.

O senhor não acha que…

Deixe-me concluir. Então, se a Globo diz que não é golpe, só porque ela diz, o povo brasileiro deve acreditar? É como eu sempre disse. Tem rabo de jacaré, tem dente de jacaré, olho de jacaré, cabeça de jacaré, couro de jacaré… mas não é jacaré?! Veja, não conversei com o Roberto Marinho. Porque, também aqui, procuramos nos evitar. É ele lá e eu cá. Mas posso assegurar que nem o Roberto Marinho, nem ele deixaria de classificar este ajuntamento de forças contra um governo democraticamente eleito como uma tentativa de golpe. Digo mais. O Roberto Marinho deve estar descontente com os filhos dele. Como condenar uma pessoa se não há um crime? É como eu vejo.

Qual a sua análise do papel da imprensa neste momento?

Tu sabes do apreço que tenho pelos jornalistas. Minhas batalhas sempre se deram em outra esfera, em outro plano. Tu sabes também o quanto a Globo e seus satélites, como o seu jornal e suas rádios, me perseguiram. As rádios, menos, é verdade. Mas estas costas aqui ainda me doem de vez em quando por causa das chibatadas que recebi das Organizações Globo. Sobretudo da TV e do jornal, que cresceram e prosperaram e se tornaram um império na ditadura. A Globo, sobretudo, é filhote da ditadura! Mas, sabes?, nem disso guardo mágoa. O que se vê hoje, creia, é menos cruel do que eu suportei. Tudo que o Leonel Brizola fazia… e… tiscs… até o que o Leonel Brizola não fazia… tudo era motivo de contestação desse império. A meu ver, Perseu…

Marceu, governador…

A meu ver, o papel da imprensa é fiscalizar, denunciar. E creia que a História só é escrita porque existem contemporâneos que a relatam. Estes contemporâneos são tu e teus iguais, jornalistas, e eu os respeito. Agora, a manipulação, ou o destaque sem medida e sem propósito que se dá a determinados fatos, isso, francamente, a História trata de dissipar e de dissolver no seu grande caldo. De modo que respeito os jornalistas, mas sempre tive graves ressalvas com seus patrões.

E o papel do juiz Moro?

Veja. Este rapaz, o juiz Moro, é um jovem magistrado, voluntarioso, que tem lá suas boas intenções e as suas convicções. Daqui o assisto. Mas, francamente, percebo algum deslumbramento nos seus procedimentos. Não quero desagradá-lo nem desrespeitá-lo. Mas a divulgação da conversa do Lula com a presidente Dilma, olha, francamente, aquilo foi um inominável excesso. Com todo o respeito ao magistrado Moro, foi sim. Lula, em conversas privadas, é desabrido, não resiste a um k-7. A mim mesmo já me disse coisas que eu não ousaria repetir. Mas, honestamente, na minha convicção, divulgar aquela conversa, olha, foi um sinal de perigo para o que ainda pode vir.

Que coisas foram essas que o Lula disse ao senhor em caráter privado?

Dirceu, veja, ele jamais me disse nada que fizesse uma vaca dar mais leite no pasto, como se dizia lá no campo, ou um cusco caído de mudança se achar. São coisas que morreram comigo. Não tive tempo de acompanhar aí esse programa da Globo, o “Big Brother”. Mas creio que o juiz Moro cedeu à tentação do “Big Brother” ao expor  uma conversa sem consequências da presidente Dilma com o Lula.

O senhor concorda que os pecados do PT comprometeram o governo Dilma?

A rigor, o PT, por si só, já é fruto de um pecado. O PT foi gestado na ditadura com a permissão dos militares para diminuir a nossa força. Nós temos essa compreensão. Nós, que estávamos no exílio, deveríamos ser aniquilados. O plano era esse. Assim imaginavam os feiticeiros, os alquimistas do regime militar, quando permitiram, e até incentivaram, o nascedouro do PT.

O senhor sempre disse isso. Não é um pouco de mágoa pela ascensão do PT nas camadas populares da sua época, nas quais o senhor costumava ser majoritário?

Olha, Marcel…

É Marceu, governador…

Tu me perdoas. Veja que foram tantos anos contigo ali, no teu papel de repórter, sempre ao nosso redor, fazendo as tuas entrevistas, as tuas perguntas, tu bem jovem, eu lembro, e eu nunca acertei teu nome, não é verdade (rindo)? Te peço perdão. Mas veja, Dirceu, o PT, na verdade, era forte na Zona Sul do Rio de Janeiro, em Ipanema, esta mesma Ipanema que hoje se posiciona contra a dona Dilma e acha bonito este Aécio, que é uma espécie de Moreira Franco moderninho. Reconheço que o PT era forte também numa certa intelectualidade paulistana engomada, não é verdade?, que tinha preconceito contra nós, que sempre nos apresentamos com as nossas botinas e bombachas sujas de barro. Mas, creia, não acho que seja sobre isso que devemos falar aqui. Não carrego mágoas no meu coração. Mesmo morto, tenho um coração puro de mágoas.

Mas os crimes atribuídos a vários petistas do núcleo fundador do partido da presidente não comprometeram seu governo?

Tu me permitas voltar ao meu raciocínio. Os militares achavam que o PT seria mais fácil de ser vencido. E, na verdade, o processo social mostrou que eles, os militares, construíram a sua própria armadilha. Deixa eu te dizer. Eu não morro de amores pelo PT. Quem me acompanhou por esse caminho longo de onde eu venho sabe disso. Tenho aqui as minhas diferenças, inclusive ideológicas, com o PT e o Lula. Sempre tive! Acho mesmo que o PT não faria por nós, se fôssemos nós no lugar dele agora, o que temos feito por ele, com a nossa militância, hoje menor, é verdade, mas ainda combativa e que tem resistido e gritado “não” ao golpe. Mas não vejo ligação da presidente com esses excessos do PT em suas relações questionáveis com essas empreiteiras da Lava-Jato.

O senhor parece gostar da Dilma.

Tenho por ela um enorme respeito. Dona Dilma já esteve conosco, lá no Rio Grande do Sul. Nasceu para a política sob as nossas vistas. Era uma jovem técnica que contribuiu com o governo do nosso irmão Alceu Colares. Vinha de um passado sofrido. Foi presa e torturada. Não delatou um só companheiro. Isso, para uma mulher, e ter chegado aonde chegou, francamente, é digno de grande respeito. O simbolismo de uma mulher na Presidência é, para nós, para mim, que tanto defendi a participação não só das mulheres, mas dos negros… O simbolismo de ter a Dilma na Presidência nos gratifica. O PT andou por aí fazendo concessões a esses barões, a esses senhores de sempre, não é verdade? Dizem que fez isso para financiar um projeto de permanência longa no poder. E agora paga pelos pecados que cometeu. Mas não vejo, a rigor, nada contra Dilma para que se peça seu impeachment.

O senhor vê semelhança entre o cenário de agora e o que levou Vargas ao suicídio? Ou ao que resultou no golpe contra Jango?

Vejo não só semelhanças, mas, principalmente, vejo a mesma casta por trás de tudo isso. A mesma elite inconformada com os pretinhos de canelas ruças que passaram a ter educação boa e a comer melhor nos Cieps do meu tempo. Essa mesma elite se incomoda agora com nossos irmãos nordestinos que conseguiram viajar de avião. Ela se incomoda com a inclusão de jovens negros nas universidades. É claro que, com os anos, essa casta se modernizou. Usa gravata estrangeira, não é verdade? O velho Getúlio tomou uma atitude extrema para encerrar uma crise que paralisava o Brasil, construída artificialmente pelos que falavam de um “mar de lama” sobre o Palácio do Catete. Francamente! Com Jango, foi um pouco diferente. O temor era do perigo comunista, como se nós fôssemos invadir as mansões do Morumbi. Esta mesma elite que chegou a abrir seus salões para chás da intelectualidade petista e agora se volta contra Dilma.

O senhor fala como quem ainda carrega mágoas do PT…

Mágoas, a rigor, não mantenho de ninguém. Aqui onde estou as mágoas se dissipam. São apenas minhas convicções e constatações.

Se Dilma sofrer o impeachment, e o vice Michel temer assumir, que cenário o senhor vê para o Brasil?

O cenário de um desastre. Francamente, de um desastre. Um vice sem nenhum voto?! O PMDB deste Temer, veja bem… tisc… É um partido que está aí cortejando o poder em troca de cargos desde o funeral da ditadura! Desde o funeral da ditadura! Havia lá companheiros que respeitávamos. Mas, hoje, a rigor, o PMDB é um partido que vive das sobras de quem chega lá. Eu mesmo, quando governei o Rio, convivi com esta gente. Eu te alerto, e quero alertar o povo brasileiro! Se este Temer assumir, se o PMDB conquistar a Presidência sem ter tido um voto sequer, isso será o desastre!

O que o senhor pensa de Eduardo Cunha, presidente da Câmara?

Francamente, é o que nós pensamos, este rapaz não teria condição sequer moral, que dirá legal, de pedir o impeachment da presidente Dilma! Veja que ele está mais enrolado do que linha de pandorga presa em paineira. Este rapaz, o Cunha, ele, sim, deve explicações severas ao Brasil! E deve ser cobrado firmemente. Francamente! Veja, Alceu…

Marceu, governador…

Perdão, Morfeu. Este Cunha, tu me perdoes o modo franco, não vale um traque de novilho! Tu sabes o que é um traque de novilho?

Não… não sei.

Eu te digo. Não dizem que o gado solta gases que comprometem a atmosfera? Pois os novilhos soltam traques. Este Cunha, te digo, não vale um traque de novilho!

A ex-senadora Marina Silva defende novas eleições presidenciais caso se comprove que dinheiro de corrupção tenha financiado a campanha de Dilma e Michel Temer. O senhor apoiaria esta saída?

Tenho pela ex-senadora Marina, mulher guerreira, com uma trajetória de luta pelos desfavorecidos da Amazônia, tenho por ela um respeito muito grande. Mas, francamente, é preciso cuidado. Sinceramente, honestamente, acho que a ex-senadora Marina costeia o alambrado quando propõe esta saída. Ao propor isso, ela quase dá um salvo conduto para a turma lá desse pato da Fiesp.

Qual a melhor saída?

No meu entendimento, a saída é deixar a Dilma concluir seu governo e permitir que o povo brasileiro decida quem irá substituí-la em 2018. A rigor, é o que defendemos.

Isso não representaria a absolvição dos erros do PT?

Honestamente, não é no que nós, que viemos de longe, acreditamos. O PT já está pagando caro, tu podes crer, pela prosápia de se imaginar impune. O partido que se apresentava como vestal… O PT perdeu aí companheiros importantes nesse seu processo de desgaste. Daqui onde estou, vejo figuras como o deputado Chico Alencar, o ex-deputado Milton Temer, que não é parente do vice, figuras importantes que se descolaram do PT, porque não compactuaram com o que já se desenhava. A Neuza, minha mulher, dizia: “Leonel, tu não confies no PT e neste Lula.” Vários companheiros nossos diziam a mesma coisa. A nós, para o nosso julgamento sem trégua, bastava sumir um alfinete do Palácio Guanabara para um punhado de petistas gritar: “Olha do que esse pessoal do Brizola é capaz! Vejam só!” Eram implacáveis conosco! E, hoje, o que se vê é a fábrica inteira de alfinetes exposta a toda sorte de denúncias.

Governador, embora a sensação seja de que há uma maioria pelo impeachment, não só no Congresso, mas nas ruas, o país ainda parece dividido em duas metades barulhentas, que se ofendem no cotidiano e nas redes sociais…

Perdão. Redes o quê?

Redes sociais, governador. São tempos de internet. Os debates se estenderam das ruas para as conversas pelo computador, pelo celular…

Veja, Orfeu. Quando um irmão ofende um irmão por sua preferência política, é momento de se refletir. Tenho percebido isso daqui onde estou. Confesso que me entristece. Política não é campeonato de futebol, em que cada um tem um time. Daqui, vejo o Dunga, por exemplo, em seu novo quarto de hora de protagonismo à frente da seleção. A seleção vai mal, Dunga comete seus erros. Mas, por isso, vamos deixar de torcer? Artistas têm se posicionado a favor do governo. Mas, francamente, penso que muito mais importantes do que os globais da novela das oito são os brasileiros humildes. Esses é que precisam acordar e ir às ruas para defender a democracia que foi conquistada à custa de muita dor. Creia.

Governador, se o impeachment sair, o que poderemos esperar do Brasil?

Não creio que saia. Mas veja. O processo social é sábio. Às vezes, nos obriga a dar um passo atrás para, mais adiante, darmos dois à frente. Tenho a firme convicção nisso que te digo. Quem sabe o PT, chamuscado por tantos estrépitos de uma fogueira que ele mesmo acendeu, não saia melhor disso tudo? Que o impeachment não saia e o PT, depois de expurgar seus pecadores, renasça melhor? É a minha esperança, daqui onde estou, e a mensagem que eu vos deixo.

Para Zoraia e todas as trans

A fotografia de uma transexual fantasiada de baiana na Banda de Ipanema, estampada numa primeira página de jornal velho encontrado em casa, me fez lembrar de novo de Zoraia, a única primeira passista travesti que conheci na vida.

Aliás, deve ter sido a única primeira passista transexual de toda a história das escolas de samba.

Num tempo em que ainda não havia rainhas de bateria, Zoraia reinava à frente da querida Imperial de Morro Agudo, agremiação da minha infância, luminosa verde e branca que vai estar pra sempre no meu coração e na minha lembrança, e me conduziu, ainda muito menino, ao altar do meu casamento indissolúvel com o carnaval.

Apesar de sua existência inusitada – porque, num ambiente de manifestações machistas, com seus códigos e idiossincrasias, o título de primeira passista, que dirá o de rainha, era deferência concedida apenas à mais desejada das cabrochas -, bom, apesar disso, é pouco provável que os estudiosos dos desfiles das escolas de samba, desde sua origem, saibam da história de Zoraia.

Escrevia-se Zoraia assim mesmo, com “z” de ziriguidum, nome social de uma criatura tão diferente pros meus olhos de menino em Morro Agudo, que, no início, eu não conseguia adivinhar se ela era homem ou mulher.

Era muito alta, devia medir quase 1,90m. Tinha a voz meio grossa, meio fina, peitinhos miúdos de limão e olhava pra gente com olhos de lascívia.

Zoraia resplandeceu no carnaval de Morro Agudo nos anos 1960 e 1970. De certa forma, era da linhagem de uma Madame Satã, por exemplo, homossexual que dominou a Lapa carioca dos anos 1940 e 1950. Como Satã, era valente e não costumava perder as brigas em que se metia.

Pobre, nascida na Baixada Fluminense, anti-heroína de uma vida distante dos colégios e próxima dos conflitos com a polícia, era a minoria em forma de gente. Seu tipo se enquadrava no de todas as vítimas da sociedade branca e má que foi se estabelecendo no Brasil desde a Primeira Missa ou desde a chegada do primeiro navio negreiro.

Era negra, pobre, não era bonita e, num complemento fundamental de sua condição, nem mulher era.

Mas antes de ter sua carreira interrompida pelas dores de uma condenação na Justiça por um crime que eu nunca soube direito qual foi, defendeu, anos a fio, com orgulho de princesa do carnaval, a bandeira da sua, da nossa escola de samba. Com sua magreza talhada em curvas artificiais, desfilava, deslumbrante, junto ao vistoso  pendão verde e branco da Imperial de Morro Agudo.

Na infância, uma das nossas brincadeiras preferidas era provocar Zoraia. Naqueles dias em que o homossexualismo feminino era, pra mim,  algo insondável, eu e meus amigos de rua descobrimos, enfim, graças a ela, que a humanidade não era dividida apenas entre homens e mulheres.

Havia também os “viados”, que é como a gente a chamava – ô viadoooooo! – na farra politicamente incorreta e insensível e idiota, tampouco reprimida, da meninada que vivia caçoando de quem era só diferente.

Zoraia cobrava caro pela ofensa. Corria atrás da gente e, quando pegava um, não economizava cascudos tão doloridos. Bem feito pra nós. E, se não conseguia nos alcançar, berrava palavrões e, de longe, mostrava o pau, balançando a peça de tamanho razoável, que acrescentava a seu aspecto já confuso pra nós um detalhe de aberração e deformidade.

Alguns palavrões que gritava eram desconhecidos, o que nos obrigava a pedir a tradução de garotos mais velhos. Lembro que um desses garotos mais velhos, certa vez, gritou pra ela:

– Zoraaaaaaaiaaaa! Tua buceta é no cuuuuuuuuuuuu!

Achei curioso que, naquele dia, ela não se ofendeu. Parou de correr, olhou pra criançada que se acabava de rir e, em vez de estrilar, como sempre, devolveu com o nariz empinado e um sorriso orgulhoso:

– Até que enfim vocês disseram alguma coisa que presta! Dessa eu gostei!

Ainda hoje ouço falar que, como a Geni da “Ópera do Malandro”, do Chico Buarque, Zoraia, em sua contundência real, era a alegria dos peões de obra, dos degredados do sexo, dos viúvos solitários, dos solteirões tarados, dos aleijados, dos desterrados da sorte, dos loucos de rua e dos desvalidos que se saciavam com seus favores.

Com alguns, iria de graça. Com outros se deitaria em troca de notas miúdas, cigarros, bebida ou prendas ordinárias, como perfumes e bijuterias furtados das prateleiras de casa.

Dizem também que consolava mulheres enfastiadas de seus maridos – e que, nesse papel, teria chegado a roubar o coração de uma ou outra senhorinha carente de gozo e carícia e afeto.

Lembro que tinha uma irmã linda e cobiçada. Contam que muitos homens iam com Zoraia só pra amainar, com fantasias, a obsessão de possuir a deusa primeira da família. Ter Zoraia na posição de cunhada era uma possibilidade que o preconceito disseminado impedia, mas devia ser o sonho que povoava o fundo da alma de muitos em Morro Agudo.

Talvez não tenha sido o meu e o dos meus amigos por uma questão cronológica. Éramos bem mais novos. Mas ouvi sobre homens que sofreram de se embebedar nos botequins com o coração afogado na tristeza por não desfrutar das virtudes da irmã de Zoraia.

Lembro que, certa vez, adolescente, entrei tarde da noite no Botequim do Dimas, Deus os tenha – o Dimas, que já morreu, e seu botequim, que virou armarinho, acho -, e encontrei meu tio sentado diante no balcão. Perto dele, talvez dois banquinhos de meia-bunda adiante, estavam a irmã e a mãe de Zoraia.

A irmã já não era aquela visão mestiça e perturbadora da minha infância, mas ainda atraía todos os olhares masculinos do bar. Aliás, não era a única. Dividia alguns com a mãe, ali uma cinquentona bem apanhada, capaz de mexer com a libido dos homens no recinto miúdo.

Um dia Zoraia foi presa, e eu nunca mais soube dela. Sua mãe e sua irmã, com os anos, também sumiram, e, desde então, aquela figura extravagantemente andrógina e improvável dos meus dias de criança, de cabelo carapinha escondido sob lenço ou peruca, passou a ser tema de conversas sobre as brincadeiras bobocas e sem graça que aprontávamos na infância.

Anos atrás, cheguei a pensar em me valer das minhas prerrogativas de repórter pra tentar descobrir seu destino. Logo desisti. Como não sabia seu nome de certidão, não ia dar muito certo telefonar pra assessoria de imprensa do Departamento do Sistema Penal do Estado do Rio e perguntar por uma pessoa chamada Zoraia, que nem fama no mundo do crime tinha.

Recordo que, na cobertura de uma rebelião no presídio de Água Santa (terá sido mesmo Água Santa?), ali pela segunda metade dos anos 1980, cheguei a imaginar que poderia encontrá-la. A cena: eu, de bloco e caneta nas mãos, anotando as queixas dos presos, e, no meio deles, lá estaria a antiga estrela dos desfiles da Imperial, feliz com a troça de um colega de cela, que gritaria para os jornalistas:

– Eeeeeeeiiiiiii! Esta aqui é a Zoraia, que tem a buceta no cuuuuuuu!

Ela me reconheceria, e eu, compungido e arrependido dos meus malfeitos infantis, rogaria:

– Desculpe, Zoraia, desculpe.

Que nada. Zoraia não estava ali. Há algum tempo, contei a um amigo da vida toda de Morro Agudo da intenção de escrever sobre ela um dia. Pedi que me ajudasse a descobrir seu paradeiro. Ou, pelo menos, se ainda era viva.

Depois da pesquisa possível, meu amigo ouviu que a personagem da nossa infância teria cumprido pena de vários anos e deixado a cadeia em data imprecisa, um tempo atrás. Segundo essa versão, ela se tornara evangélica, passara a frequentar uma igreja e, antes de morrer, doente de mal desconhecido, envelhecida e mofina, reassumira o nome de batismo – Wilson.

Quem sabe na esperança de alcançar o céu, e, com ele, a remissão dos pecados de antigamente, e talvez ainda a ressurreição da carne castigada e a vida eterna, amém, Wilson teria sido enterrado já sem as curvas artificiais que me intrigavam na infância, e sem tempo de ouvir o meu pedido de perdão.

* Texto revisado, publicado originalmente no livro “Parem as máquinas – Jornalistas que valem mais de 50 contos” (Casa Jorge Editorial, 2006), reunião de crônicas e contos de 50 autores, um deles este cronista digital.

Do PMDB, Partido Majoritário Da Boquinha, e da real culpa de Dilma

Sou contra o impeachment porque não há crime cometido por Dilma que o justifique.

Sou contra o impeachment porque, como já se falou, pra haver justiça, pelo que se sabe até agora, 14 governadores também deveriam perder seus mandatos por terem cometido as tais pedaladas fiscais – e eles não vão perder.

Sou contra o impeachment porque as boas maneiras da democracia impedem que se tire do poder um governante só por não gostarmos dele.

Sou contra o impeachment porque todo esse movimento contra Dilma ainda acaba fazendo o PT de vítima, coisa que ele não é.

Se Lula fez besteira com sua biografia e se envolveu com as empreiteiras amigas de todos os governos – inclusive, o dele; inclusive, os do PSDB -, que seja punido por isso.

Se o PT escandalizou até quem nele acreditava e nele votava, que os autores petistas dos supostos crimes continuem indo pra cadeia. Muitos já foram.

Mas Dilma, o que fez? Não está na lista da Odebrecht e, até onde sabe o juiz Sérgio Moro, não afanou a Petrobras. Não foi pega com dinheiro de procedência desconhecida escondido nas roupas íntimas, não pôs na bolsa verba de merenda de criança, não ganhou apartamento no Guarujá nem casa em Maricá, tampouco assinou contrato fictício pra remeter recursos ao exterior.

Por isso sou contra o impeachment. Sou, sim.

Dilma faz um governo ruim? Faz. Talvez porque não consiga governar – mas isso não é razão pra impeachment. Então, se for arrancada da Presidência, terá sido golpe? Sim. E por abominar golpe, sou contra o impeachment.

Em 2014, 54,5 milhões de brasileiros votaram em Dilma. Quem sabe, hoje, já não votassem – mas nem isso é razão pra impeachment.

Querer o impeachment é querer a mesma coisa que o PMDB. E, se outra razão não houvesse, dificilmente eu conseguiria querer a mesma coisa que o PMDB – e também por isso não posso ser a favor do impeachment.

Até o pó do cafezinho servido no Salão verde da Câmara dos Deputados e o misto-quente da lanchonete do Senado reconhecem no gesto do PMDB de pular do barco do governo um movimento de oportunidade.

Não posso ser a favor de uma causa defendida por quem lida com a coisa pública movido pelo instinto da oportunidade privada. Ou será que o partido do vice Michel Temer saltou do governo por estarrecimento com os descaminhos do PT? Duvido.

O Brasil estaria bem melhor se a razão fosse essa.

Partido sem voto e sem vergonha de expor sua sofreguidão por cargos, o PMDB, já rompido com Dilma, não consegue que todos os seus ministros deixem o governo. O apego é maior que a fidelidade. A boca é maior que a fome.

Como querer a mesma coisa que um partido assim? Sem generalização, e com todo o respeito, o cronista digital não consegue. Não consegue.

O cronista digital já reiterou algumas vezes que não tem filiação partidária. Não é petista e nunca foi eleitor incondicional de ninguém. Jamais votou na direita, isso, sim, e acredita que jamais votará, porque já está velho demais pra mudar sua alma e suas convicções e sua crença na possibilidade de um mundo mais justo, onde quem tem menos seja a prioridade e não a conveniência pessoal de políticos.

A prioridade do grande PMDB, este que atua no atacado e no varejo da política, parece ser a boquinha. Não posso ser a favor da boquinha. Também por isso sou contra o impeachment.

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O cronista digital pede desculpas por ter ficado tantos dias sem escrever aqui. Estava na Amazônia. Foi conhecer Belo Monte e suas dores. Viu que lá moram as culpas de Dilma.

Viu miséria, flagrou mentira, enganação. Assistiu ao velório de um rio e do futuro dos índios que habitam suas beiradas.

Emocionou-se com a pescadora Raimunda e seu marido João. Sentiu-se impotente diante do relato dos ribeirinhos que tiveram suas vidas roubadas. Lamentou por mais de uma centena de ilhas e praias fluviais engolidas pelo alagamento causado por uma hidrelétrica que não vai gerar a energia prometida.

Solidarizou-se com o índio Reinaldo, com o pescador Zé Carlos, com as histórias de duas Antônias, temeu pelo futuro da menininha Niara.

Voltou certo de que metade da culpa pelo ocorrido lá é da grande mídia, por não ter dado a atenção necessária àquele desastre.

Quem quiser ler o que o cronista digital foi fazer lá, está tudo aqui: projetocolabora.com.br/energia/.

* A plantinha frágil aí de cima é inocente. Diz respeito apenas à segunda metade desta crônica. É um pinhão-pajé, que veio semente do Xingu e já começa a brotar.