Daqui a pouco mais de sete meses, no dia 6 de dezembro, uma terça-feira de Lua minguante, como informa o calendário, vai fazer 40 anos que Jango morreu. Eu era uma criança num país subjugado pela ditadura militar, e nem sabia da existência dele. Muito menos soube da morte dele na época.
Entretido nas brincadeiras de um quintal vasto e cheio de crianças, entre goiabeiras, mamoeiros, uma amendoeira, dois abacateiros, um pé de abiu, um de romã, um de pitanga, ignorava o país real que prendia, torturava e matava quem ousasse desafiar seus subjugadores.
Hoje, à custa daqueles presos, torturados e mortos, meus filhos têm liberdade e conseguem saber o que vai no Brasil e construir sua própria opinião – pra minha alegria, convergente com a minha.
Naquele Brasil em que eu fui criança, naquele país em que Jango foi sepultado, não era assim. Na escola, não se falava dele, nem de seus sonhos, tampouco se informou de sua morte.
Derrubado da Presidência pelos generais de 1964, herdeiro político de Getúlio Vargas, Jango, como eu saberia mais tarde, estava no exílio da Argentina às 2h45 de uma madrugada de domingo pra segunda-feira quando seu coração parou de bater, fulminado por um enfarte.
Um enfarte que, segundo seus amigos, havia se elaborado aos poucos em seu peito no curso de mais de uma década de solidão no exílio.
Tinha 58 anos de idade. Havia chegado à Presidência da República aos 43. Com 35, já era ministro do Trabalho de Vargas. Desterrado de seu país, morava em Corrientes, província do município de Mercedes, na Argentina.
Seu corpo atravessou a fronteira brasileira ainda na tarde de 6 de dezembro de 1976. Entrou no país pela Ponte Internacional de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, acompanhado por um cortejo de carros e sonhos. Sonhos que jamais viraram realidade.
O número redondo do aniversário de sua morte, em dezembro, será apenas uma coincidência. Um emblema pra quem, volta e meia, tenta imaginar o país que teria sido o de Jango e, por causa do golpe, não chegou a ser. O Brasil que só existiu no projeto – e, antes de nascer, foi abortado.
No dia seguinte ao do enfarte de Jango, Carlos Castello Branco, o Castellinho, com quem eu dividiria a mesma redação muitos anos depois, escreveu no “Jornal do Brasil”: “Poucos políticos foram tão cruamente julgados por seus contemporâneos, sobretudo depois de deposto.”
E ainda: “João Goulart se imaginou um pioneiro da revolução social do Brasil. E, certamente, deve ter morrido na expectativa de que a História será com ele mais amena do que seus contemporâneos.”
Hoje, a amenidade que a História dedica a Jango é a do esquecimento. Seu modelo de Brasil estatal se amofinou e desmoronou a cada privatização da era tucana. O trabalhismo que representava foi dizimado primeiro na ditadura e, em seguida, na própria democracia, eleição após eleição.
Antigos companheiros de luta, salvo um ou outro, estão mortos ou também esquecidos. Sua vida, sua trajetória, seu sonho, nada disso virou algo além de um túmulo na sua gaúcha São Borja. Sua memória, como ele próprio em vida, foi degredada e desterrada.
Grande proprietário rural, Jango governou o Brasil pensando na reforma agrária. Se daria certo ou não, jamais se saberá. Aquele Brasil não houve. Deposto, teve a intenção devastada.
O que de mais relevante ocorreu no setor agrário brasileiro desde sua morte foi o massacre de 19 trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás, no Sul do Pará, em 1996. Fernando Henrique Cardoso governava o país. O massacre, cometido por 150 policiais militares, completou 20 anos no último 17 de abril.
Pois o Brasil do quadragésimo aniversário da morte de Jango conspira por um lugar curioso na História universal – o daquele que agrediu violentamente a democracia com base em recursos constitucionais.
O Brasil do quadragésimo aniversário da morte de Jango vive, enfim, a expectativa da derrubada de Dilma e da ascensão de Michel Temer.
Produtor de maus políticos em larga escala, este Brasil assiste ao julgamento da presidente como quem vê um filme já sabendo seu final. Um julgamento que, pro espanto da imprensa lá de fora, mas não a daqui, é conduzido justamente pelos mesmos maus políticos que esta terra não se cansa de produzir, não se cansa de produzir, não se cansa de produzir.
Dilma é julgada por transgressões fiscais, mas será condenada por crimes que não cometeu. Envergonha o silêncio da grande imprensa brasileira sobre isso. A grande imprensa brasileira estava amordaçada na morte de Jango. Agora não está. Diz o que quer. Ou deixa de dizer o que não quer dizer.
Quem queria o Brasil de Jango, quando havia Jango no Brasil, sabia o país que poderia vir a ser com ele. Quem quer o Brasil de Temer não parece se importar com o Brasil que será. Basta que não seja o de Dilma.
É previsível o país que será o de Temer. Ainda será injusto na distribuição de sua riqueza. Ou, provavelmente, será mais injusto. Continuará repartindo mal as oportunidades. Os pretos não deixarão de ser maioria nas prisões ou onde mais a indigência se faz presente.
Sem Dilma, e com Temer, a saúde pública não vai melhorar. Permanecerá indecente. O trem que sacode todo dia lotado de gente pobre ainda será assim. O país seguirá refém dos infortúnios que o assombram.
O fim da corrupção, desejo alegado por quem quer Temer na cadeira de Dilma, não vai acontecer. A corrupção, possivelmente, só terá menos visibilidade – porque já haverá um cristo na cruz pra salvar a classe política de todos os pecados.
Jango morreu sem satisfazer os seus sonhos e os de uma parcela de Brasil que punha fé em seu ideal. Morreu condenado sem julgamento formal.
Morto, não mereceu do então ditador Ernesto Geisel, que presidia o país naquele 6 de dezembro, sequer uma decretação de luto oficial. O mesmo Geisel cuja memória, por ironia, mereceria essa deferência do governo civil do professor Fernando Henrique ao morrer em 12 de setembro de 1996.
Jango, como tudo faz crer que acontecerá com Michel Temer, também chegou à Presidência depois de ser eleito como vice. Era o primeiro na linha de sucessão de Jânio Quadros, que renunciara em 1961. Mas era um tempo em que se votava também pra vice. Ele não era da chapa de Jânio. Ao contrário, na eleição, fora seu opositor.
Antes, já havia vencido a disputa pelo posto de vice de Juscelino Kubitschek com mais votos do que o próprio presidente.
Outra coincidência com Temer é que Jango também era casado com uma jovem primeira-dama muito bela, recatada e do lar. Dona Maria Thereza tinha apenas 21 anos quando o marido tomou posse.
Mas as coincidências param aí.
Às vezes, fazemos tudo pra conseguir alguma coisa. Ou achamos que fazemos. Não raro, em ocasiões de muita aflição, fazemos tudo errado, imaginando fazer o certo. Aí, se não conseguimos o objetivo, o resultado é uma sensação misturada de frustração, melancolia e arrependimento.
Visitando a História 40 anos depois, fica a sensação de que os contemporâneos de sonho de João Goulart foram todos assim. Nenhum de seus seguidores ou companheiros de luta chegou ao poder.
Os sentimentos são universais. Todo mundo estará sempre passível de sentir fome, frio, saudade, desejo disso ou daquilo. Agora mesmo, há uma multidão de gente ali fora, querendo coisas. Seja a satisfação de um sonho contrariado, seja a vitória do time do coração, seja um país mais justo, qualquer coisa.
Uns conseguem. Outros, não. Jango não conseguiu. Se conseguisse, talvez não houvesse hoje nada disso. Se conseguisse, talvez não houvesse hoje o sacrifício de Dilma, ou talvez nem houvesse Dilma, e talvez o Brasil fosse outro.
Mas é só um sonho. E há sonhos que não se realizam.