Fez 20 anos que o professor Darcy Ribeiro morreu, aos 74 de idade, no dia 17 de fevereiro de 1997, uma semana depois do carnaval. O tempo foi ligeiro e aprontou muito de lá pra cá. Sabemos.
Antropólogo focado na preservação dos índios, educador maior que pensava no futuro das crianças brasileiras, escritor e político defensor do socialismo com liberdade, Darcy era herói, paladino dos indefesos. Faz muita falta.
No meu pensamento infantil, que nunca vai deixar de ser assim, o professor Darcy merecia reviver num personagem chamado Super-Brasileiro. Um Super-Darcy.
Era mesmo um grande brasileiro. Talvez tenha sido o maior de todos, ombreado ali, quem sabe, com Pedro II, Santos Dumont e outros poucos, bem poucos.
Darcy morreu de câncer depois de uma fuga do hospital e de implorar aos amigos Frei Betto e Leonardo Boff que o fizessem acreditar em Deus – porque, pra ele, era doloroso demais se imaginar desintegrado, além do corpo físico, e deixar de existir. Era duro, pra ele, pensar que, depois de se despedir da matéria, haveria apenas o nada e a sua própria inexistência.
Já vencido pelo câncer, à espera apenas do último suspiro, o professor se foi sem ter visto o desfile da Viradouro, escola campeã daquele carnaval com o enredo “Trevas, luz, a explosão do universo”, de Joãosinho Trinta. Partiu sem assistir às vitórias do Lula e da Dilma, e sem tempo de saber do impeachment e da Lava-Jato e da prisão do Sérgio Cabral e da ascensão do Temer.
Morreu sem sorrir por Obama ou se lamentar abestalhado pela escolha do Trump nos Estados Unidos. Fechou os olhos sem nos explicar Crivella e João Dória, e sem nos socorrer desta tragédia feita com o Brasil.
Estava assistido por Leonardo Boff no último instante. Os relatos coincidem. Consta que, quando Boff chegou, Darcy entregou ao amigo um texto inédito, com confissões, onde se lia num prólogo: “Termino minha vida exausto de viver, mas querendo mais vida, mais amor, mais saber, mais travessuras. A você que fica aí, inútil, vivendo vida insossa, só digo: ‘Coragem! Mais vale errar se arrebentando do que se poupar pra nada.’ O único clamor da vida é por mais vida bem vivida. Essa é, aqui e agora, a nossa parte. Depois, seremos matéria cósmica, sem memória de virtudes e gozos. Apagados minerais. Pra sempre mortos.”
Darcy, que amava as mulheres e tinha um nome ao mesmo tempo masculino e feminino, merecia um Dia Nacional, uma estátua do tamanho da cúpula do Senado, uma avenida mais comprida do que a Via Dutra, ou talvez batizar a Amazônia – Floresta Tropical Professor Darcy Ribeiro!
O destino deu a muitos repórteres de política – entre eles, o cronista digital – a alegria imensa de ter convivido com o professor em entrevistas e andanças Brasil afora, na cobertura de campanhas eleitorais. Darcy era bárbaro.
O Brasil que sonhava é ainda o desejado por muita gente, impossível duvidar disso. A solidariedade que despertava, o amor que emanava, a entrega individual que propunha, as formulações de país justo que oferecia, tudo era magnífico.
A imprensa dominante do tempo dele não teve tamanho pra refletir seus raciocínios. Quando ele dizia que a favela era “uma beleza”, as manchetes gozavam em vez de tentar decifrar a profundidade do seu diagnóstico.
Darcy disse: “O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade e de descaso.” Estava certo. Não lhe deram ouvidos.
Disse ainda, num tempo em que semeava Cieps no Rio de Janeiro, diante do desconforto da elite: “Se os governantes não construírem escolas agora, daqui a 20 anos vai faltar dinheiro pra fazer presídios.” Foi visionário, estava certo.
Sua frase mais célebre dizia dele mesmo e dos seus fracassos contaminados por falsa modéstia, porque modéstia era coisa que o Darcy não tinha: “Fracassei em tudo que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil se desenvolver autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.”
Por falar em modéstia, Darcy dizia também dele mesmo: “Admito, com toda desfaçatez, que gosto demais de mim e me acho admirável.” E como era.
Era também contundente e amoroso. Repetia sempre que “a escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam, e o que opera no nosso país é um monstruoso sistema de comunicação de massa, impondo padrões de consumo inatingíveis e desejos inalcançáveis pelo nosso povo, aprofundando mais a marginalidade dessas populações.”
Segundo Darcy, “os brasileiros somos um povo em ser, mas impedido de sê-lo. (…) Da mestiçagem (…) fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros”.
E insistia: “O Brasil sempre foi e ainda é um moinho de gastar gentes. Nós nos construímos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.”
Mas era um otimista. Numa entrevista, certa vez, afirmou: “Só há duas opções na vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca.”
Criador de duas universidades, a UnB e a Uenf, espalhava ainda pra quem quisesse ouvir: “Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos do que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa.”
Seu parecer sobre o que se passou com o Brasil desde a primeira cópula de Caramuru e Paraguaçu era preciso: “O ruim no Brasil (…) é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada pra servir a desígnios alheios e opostos aos seus (…). O que houve e há é uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e na manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.”
Pra ele, “a crise da educação no Brasil não é uma crise, mas um projeto formulado pelas elites” pra perpetuar seu domínio.
Nestes 20 anos da morte do professor Darcy, é possível imaginar o que ele diria do Temer, do Eduardo Cunha, do José Serra no Itamaraty e depois demissionário por suposto motivo de saúde. O que diria do Cabral e do Eike Batista presos, e do Rodrigo Maia, um fedelho da Juventude Brizolista na época dele e hoje um deputado de direita na Presidência da Câmara. E ainda do Alexandre de Moraes e do Osmar Serraglio e de tantos outros.
Darcy nos faria rir, pelo menos, com seus safanões verbais tão precisos. Desabrido nos seus sentimentos e nas suas sensações, talvez elogiasse a beleza da primeira-dama Marcela. Mas, sem ele, o Brasil desinteressante do Temer não parece mesmo ser nada além disso – um país retrocedido e sem graça, com uma primeira-dama de boniteza europeia, que não pode ser elogiada pelo professor.