Carta aos meus amigos petistas

O pedido de prisão preventiva do Lula pelo Ministério Público de São Paulo não chateia quem nele votou apenas pela constatação incômoda de que, em mais de cinco séculos de Brasil, seja por motivação política ou rendição econômica, os rigores da lei, nesta terra, continuam seletivos.

Desde Caramuru, o náufrago português que se encantou pela índia Paraguaçu ao dar numa praia de Salvador em 1509 ou 1510, esses rigores funcionam pra uns “assim”, e pra outros, “assado”.

Também não entristece apenas por dar mais uma martelada no prego da certeza geral de que, em algum momento da sua ascensão tão bonita, o PT se rendeu a essa mesma lógica e passou a reproduzir, no poder, os rituais de antigos inimigos – e, talvez por ter se deixado seduzir pelos encantos de certos barões do poder econômico, o partido, ou gente dele, tenha dado chance a tudo isso que ocorre agora.

Apeado de seu passado tão belo, o Partido dos Trabalhadores, aquele partido puro do broche de estrelinha no peito que tanto orgulho dava a seus militantes, aquele do “olê, olê, olê, olá!”, aquele PT teria cedido, segundo a Lava-Jato, a favores de empreiteiros milionários e famélicos da dinheirama proporcionada por obras públicas.

O pedido de prisão preventiva do Lula não aborrece, enfim, apenas pela disseminação do pensamento de que o ex-presidente teria cometido um crime, nem só pela desigualdade do rigor de alguns senhores da lei, tão cartesianos com uns, tão camaradas com outros.

O gesto do MP paulista entristece, sobretudo, pela tentativa de assassinato de um sonho.

Pelo menos, no caso deste cronista das coisas banais e mero observador dos gestos humanos.

Quando Lula ganhou sua primeira eleição pra presidente, em 2002, saí tarde da noite do trabalho e fui me juntar a amigos petistas no carnaval da comemoração no Bip Bip, o botequim de Copacabana onde eu gostaria de estar na hora do fim do mundo.

Estava ali não como o petista que nunca fui, mas como o sujeito comum que jamais vai votar na direita e anda com seus pés por aí e é dono do seu voto e do seu nariz e do seu discernimento.

De uma forma menos rasa de olhar as coisas e seus possíveis desdobramentos, não escolhi o Lula em 2002. Escolhi o sonho que ele representava – como definiu tão bem minha amiga querida Débora Thomé nas redes sociais, falando de si mesma, nesta quinta-feira 10 de março de 2016, dia em que o Ministério Público de São Paulo divulgou seu pedido de prisão preventiva, e o Brasil assistiu a mais um capítulo do colapso, do debacle, do desastre e da tentativa de desconstrução do PT.

Naquele 27 de outubro de 2002, votei na crença de um país diferente; um sem criança abandonada na rua; um onde negros e brancos fossem olhados igual; um país em que transexuais fossem considerados gente e não aberrações; uma nação sem pessoas com fome e com hospital bom pra todo mundo.

Não votei num cara barbudo dotado de voz rouca e enorme carisma, apesar de sua formação cultural e política precária, com passado de pensamento alienado ou conservador, como ele mesmo admitiu algumas vezes.

Naquele 27 de outubro de 2002, a música foi mecânica no Bip Bip. Não havia músico disposto a tocar, apesar de haver muitos ali, no pequeno bar de 18 metros quadrados do meu amigo-pai-irmão Alfredo Melo, o Alfredinho. Todos só queríamos nos divertir e comemorar. Era justo.

Foi um dia tão mágico. Adalgisa devia vagar por outro bairro, ainda sem saber que eu existia. O mar de Copacabana cuspia na areia o sal dos corpos que haviam lotado a praia horas antes. E a madrugada chegava e anunciava que a esperança, sim, a esperança, quem se lembra?, havia vencido o medo.

Abraçado ao meu amigo Cid Benjamin, o ex-guerrilheiro que, com um punhado de outros porra-loucas, tinha sequestrado o então embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969, arriscando sua juventude e sua vida em troca da liberdade de 15 presos políticos – um deles, José Dirceu -, eu disse a ele, emocionado e enlevado pelos vapores da cerveja:

– Vocês são heróis do Brasil. A gente deve este momento a vocês.

Eu me dirigia também ao César Benjamin, irmão do Cid, outro ex-guerrilheiro, ali presente. Nem sei se eles recordam. Eu lembro como se fosse hoje.

Catorze anos e três eleições depois, Zé Dirceu está novamente na cadeia, agora não mais pelas razões nobres de 1969, e o Ministério Público paulista, tão contaminado pelos sentimentos e pelos desfavores da política mesquinha, pede que se faça o mesmo com Lula.

A intenção de muita gente nessa investigação da Lava-Jato, talvez não a de todos, mas a de muitos, por mais razões que o PT lhes tenha dado, o objetivo desses parece ser o aniquilamento do Lula e de seu partido.

(Que o Lula e o PT se entendam com a lei – mas que a lei também sopre forte assim pros lados dos algozes do Brasil camuflados no PSDB e no PMDB e no PP e em todos os Pês, e que os jornalões e telejornalões e revistões noticiem isso com a mesma ênfase).

Mas o que esses não devem conseguir – ninguém deve – é aniquilar o sonho de país que moveu tanta gente (esqueçam os petistas) a votar no Lula em 2002. Este sonho continua íntegro, inteiro, vivo, como disse minha amiga Débora Thomé nas redes sociais em seu emocionado e emocionante depoimento que transcrevo aqui:

“Nesses 14 anos, não teve um dia em que eu tenha me arrependido da minha opção. Porque na nossa democracia não é escolher a/o presidente que se deseja, é escolher entre as/os que te oferecem. Dentre as opções, foi a minha nas últimas quatro eleições. Não que eu não tenha condenado o mensalão, não que eu não tenha rejeitado quando ele fretou um avião para levar os amigos dos filhos (os tais filhos) para passar férias em Brasília. E não acho a corrupção um mal menor. O que vamos acompanhando hoje me dói, me dói muito. Ver a loucura, a loucura que corrompeu tanta gente de história boa do PT. Isso me faz chorar, me faz triste.

(…)

Não tenho nenhuma força ou argumento para defender o Lula ou as práticas de alguns petistas, tampouco para alguns erros graves do atual governo, mas aquele projeto que a gente celebrou lá atrás ainda é o dos meus sonhos e, mais que isso, estou certa de que ele pode ser o da nossa prática.

Como faz? Eu não tenho a menor ideia, mas vou tentando.”

Vamos.

18 comentários sobre “Carta aos meus amigos petistas

  1. Marceu
    Respeito o que vc escreveu e o seu sonho.
    Como contribuição, gostaria apenas de levantar uma forma diversa de pensar a respeito da seletividade.
    Quando o PT e o LULA apresentaram à nação seu projeto e filosofia (não sei se foi assim internamente no PT) um dos maiores motes foi “seriedade, honestidade, fim da roubalheira”, “porque todos outros roubaram porque eram elite e nao se importavam com o povo e nós somos povo ”
    Na verdade nunca antes alguém do povo teve esta chance, e sempre pensavamos “quando alguem de nós chegar lá vai ser diferente”
    A seletividade, ao meu ver, foi pelo desespero de entender que a Elite no poder nos roubou e agora alguém do povo no poder nos rouba.”
    Se esperava muito mais de alguém do povo e portanto a seletividade

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  2. Acho tudo muito lindo e fofinho, mas discordo, com todo o meu amor por você.
    Primeiro porque não acredito. O que foi o mensalão? O PT pagando a petistas para que votassem nos projetos do Lula? Poupe-me. Era caixa 2. Um erro grave, mas não era mensalão coisa nenhuma.
    A partir daí, amado amigo, não acreditei em mais nada “apurado” pela “imprensa” brasileira, da qual hoje tanto me envergonho — disso sim!!! — de ter um dia feito parte, e por tantos anos. Felizmente não peguei essa era escura de mentira e desinformação coordenada por uma elite que há 500 anos não destrói sonhos, mas qualquer projeto de democracia, por mais frágil que seja.
    A partir daí, meu amado amigo, aos 70 anos, carimbada e maltratada, voto PT sempre. E com orgulho sempre.
    Beijos e beijos de saudade,
    mari

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  3. Caro Marceu
    estou muito exausta pois há dois anos que não faço outra coisa senão defender a eleição. Conquista mínima para definir democracia, como disse meu professor Adam Przeworski, que está longe de ser petista. Então só queria lembrar o que, depois destes 13 anos, já ninguém nos tira. Pelo menos, duas coisas. Os indicadores sociais, tanto de renda quanto educacionais e principalmente, o de emprego. Indicadores que subiram vertiginosamente desde o abismo de 2002, e que dez lava-jatos não conseguiriam destruir. E a Universidade construída em Nova Iguaçu, pelos famigerados petistas. Esta e muitas outras. Quisera eu que Dirceu tivesse sido preso pelos malfeitos que dizem que cometeu. Infelizmente esta justiça que o prendeu serve a gente que detesta, não os seus malfeitos, mas justamente o oposto.

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  4. Gostei do seu texto e da sua utopia. Utopias são boas, mas não se vive delas. Só não entendi a necessidade de se justificar afirmando que “estava ali não como o petista que nunca fui, mas como o sujeito comum que jamais vai votar na direita”. Seu depoimento não perderia credibilidade se fosse petista… Mas tenho apenas essa pergunta pra vc: quem não andaria “com seus pés por aí” e seria “dono do seu voto e do seu nariz e do seu discernimento”? Todos os que não são de esquerda ou apenas os que querem o aniquilamento do Lula e de seu partido?

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  5. Meu querido Marceu. Saudade de você. Bom te encontrar aqui no mundo dos blogs, esse canal que permite aos jornalistas continuarem expressando suas opiniões para as pessoas num momento em que o velho jornalismo que conhecemos já parece fazer mais parte do passado do que do presente. Seu texto foi o de um gentleman, como você sempre foi, e transmite a frustração de toda uma geração com a promessa de um sonho que não se realizou. Mas, o fato é que acreditar naquele sonho de 2002 foi uma ingenuidade. O que esperar de um partido que nunca teve ética nas suas práticas. Lógico que o desfecho não poderia ser diferente. Quando você olha para a história do Lula e do PT e percebe que nunca houve prática, apenas discurso. Quando você se aprofunda na história dos sindicatos e percebe que a maior parte dos seus recursos não são aplicados em benefício dos trabalhadores, mas em nome de um projeto político de poder, você começa a perceber que o sonho era apenas dos ingênuos. A triste conclusão que a maturidade nos traz é que tanto a direita quanto a esquerda comungam os mesmos pecados. Os fins jamais vão justificar os meios. Não pode existir orgulho em lutar por um ideal a qualquer custo. E foi isso que o PT fez. Sempre utilizou as piores práticas para atingir seus objetivos. Com isso, acabou virando farinha do mesmo saco. Cometeu tantos pecados quanto todos aqueles que sempre combateu O que o país está clamando hoje não é pela derrocada do Lula, é pelo fim de um ciclo. O fim do sonho de 2002 representou para nossa geração a mesma decepção que uma criança sente quando descobre que Papai Noel não existe.

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  6. Seu texto representa tão delicada e verdadeiramente a tristeza de muitos por um Brasil melhor.
    O que me preocupa, contudo, nas linhas que sua amiga escreveu, é a colocação de que “a corrupção corrompeu…”, como se esta, a tal, fosse o sujeito ativo que determinou as condutas que temos acompanhados absurdados. Como se eles fossem coitados e sem poder de decisão, apenas influenciados por ela. A corrupção não é o sujeito, eles são corruptos, se corromperam, assim como você disse brilhantemente dos outros partidos que se camuflam e são protegidos, e são outra escória da mais alta esfera!

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  7. Me desculpe a intromissão, ñ tenho a cultura dos senhores, sou uma funcionária publica estadual de nivel médio , negra e pobre com uma realidade bem diferente dos senhores, mas senti sim uma qualidade melhor de vida, minhas filhas conseguiram ir p faculdade e tbm são funcionárias publicas, tudo c ajuda das cotas. minha filha conseguiu realizar um sonho de conhecer NY, logico q tudo c dificuldade, um carro parcelado, coisa simples, mas p gente não, construí minha casa, na zona oeste do Rio, mas consegui, não chego ao ponto de precisar de bolsa família, etc…As coisas realmente ficaram agora mais difíceis, mas confesso q tenho muito medo de voltar à ter a dificuldade de antes. Me desculpem os erros de português e minha falta de entendimento político, mas é o q sinto.

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  8. Eu sinto muito mais tristeza em meu coração do que você, apesar de nunca ter votado no PT, fui a luta em 1968 quando jovem tinha esperança em viver num país melhor, vi e vivi a luta pelas diretas já, quando casei começei ter mar nha família e passei por várias crises, desempregado em 1994 quando vi novamente luz no final do túnel, o plano real mostrou que o Brasil podia respirar novamente, nos tínhamos uma das melhores leis do mundo, a de responsabilidade fiscal, o alicerce da economia aí vem um partido vugo trabalhador que de trabalhador tinha muito poucos e caga na lei você fala em grande homem Lula, mais esquece que ele antes de ser eleito presidente rodou o mundo difamando o Brasil é rouba descaradamente chega a ser patético ele roubar o Palácio do Planalto, falando que tudo que ele levou ganhou de presente vocês são medíocre em acreditar que este homem pensa, ele só pensa nele e no poder.

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  9. Caro Marceu,

    Ainda não sou petista, apesar de ter votado em todas as eleições presidenciais no PT. Nunca me filiei pois quis me manter sempre livre para escolher votar em quem eu quisesse.

    Por um breve intervalo de tempo, estou fora do Brasil. Mas, quando voltar, talvez a minha primeira providência seja me filiar ao PT. Parece loucura, não é ? Justo agora, com o PT em plena decadência ?

    Explico: voce fala de sonhos em 2002. Eu não os tinha, só tinha alguma esperança.

    Imagino que se possa comparar da seguinte forma: voce sonhou com o Brasil no primeiro mundo, e eu, nordestina que sou, acostumada às migalhas do Brasil, tinha apenas a esperança de um futuro melhor. O slogan era esse, lembra ? “Nasce a esperança”.

    Na minha ingenuidade, não imaginava que o Lula poderia ir tão longe, como retirar o Brasil do mapa da fome. Nunca passei fome, mas neta de fazendeira pobre, vi a fome, vi aquela gente abandonada pelo Estado, uma geração após a outra, ao sabor das chuvas. Sou professora universitária. Não imaginava que o Lula e Dilma poderiam ir tão longe, como abrir, só no Ceará, em cidades esquecidas pelo poder público, sem esperança e nem futuro, mais duas universidades federais e 4 campi avançados da UFC. Uma das universidades é a UNILAB, onde 50% das vagas são para africanos de lingua portuguesa. E esses africanos tem vindo e tem nos modificado. Fico emocionada em falar isso. Fico emocionada em falar da solidariedade com a Africa que isso representa. Vi o Lula implantar as quotas. Vi a universidade se colorir um pouco em classes sociais, vi o Brasil se misturar com o ENEM e o SISU.

    Nunca imaginei que um dia ia ver a transposição do Rio São Francisco. E já quase estou vendo. Não pensei que tão cedo veria nos casebres do sertão a energia elétrica. E depois de Lula, eles tem. Eles tem dentes agora. Nunca pensei que eles veriam um médico. E o mais médicos de Dilma levou para lá um cubano. As crianças no sertão hoje estão sendo alfabetizadas. Sonham em ir para a universidade, quando antes apenas lhes era reservado a fome, ou a casa de gente rica em Fortaleza para serem empregadas ou empregados. Ainda há fome.

    Fiz o doutorado no exterior durante os governos Collor, Itamar e FHC. Vi o Brasil risível e humilhado dessa época transformar-se no Brasil dos BRICS, e pude sentir o impacto da política externa do Lula, no respeito que passei a vivenciar ao me identificar como brasileira.

    Eu poderia ficar falando horas para voce, mas o fato é que se hoje choro, ao contrário de sua amiga, não é pelo sonho não realizado. Nordestina que sou, choro pois o Lula me mostrou que era possível sonhar. Tenho consciência de que o Lula e Dilma não tocaram nas estruturas profundas que mantém a desigualdade no país, mas, ainda assim, confesso, com humildade pela minha ignorância: fez muito mais do eu sonhei.

    Ao me filiar ao PT, o farei pelo reconhecimento e gratidão a ele. Nunca tinhamos tido nada antes. E não sei quando, ao fim da era PT, voltaremos a ter qualquer coisa.

    Abraços fraternos,

    Cláudia Linhares Sales

    . >

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  10. Fico me perguntando o porquê de alguns bloguistas fazerem tanta questão de afirmar que não são petistas. Podem até não ser, o que pouco mporta. Mas, a ênfase com que dão à “confissão”, como se fosse um pecado mortal ser petista, leva-me a pensar que não querem ser confundidos com a “ultrajante”, assim com aspas, palavra “petista”, assim com aspas, tão utilizada pela elite brasileira com o fim de ofender alguém.

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  11. Marceu,não sei,se sua definição de “ser petista” seja só por ter uma filiação oficial ao partido.Pois,se for no sentido pratico da palavra você mentiu para seus leitores.
    Lembro bem como você ainda estudante de jornalismo na UFF defendia(…) e de certa maneira militava sim em favor do PT.
    Aliás,amigo vejo esse texto que “para mim” parece bem desconexo com seu passado,como um velho que já não mais vê sentido em se lutar por justiça.E embora tenha passado minha vida apenas curtindo seus belíssimos textos pelos “jornais da vida”- Lembra da manchete do jornal O NACIONAL O dono do Brasil??? Textos que retratam as dores,mazelas e todos os sentimentos humanos como poucos. Penso que hoje, pregas uma nova mentira mas essa para ti mesmo. Defender ou não o PT não é uma opção que se possa ter agora.
    Se és um LEGALISTA é sua ÚNICA opção. ou(…)

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