Toda vez que morre uma pessoa muito querida, e essa morte já era aguardada como a curva de um caminho decorado, a gente fica naturalmente triste. Às vezes, ficamos até mais tristes do que diante de um desaparecimento inesperado.
Mas a tristeza de uma perda inevitável, seja pela derrota pra uma doença ou pra velhice mesmo, é diferente.
A vida já me deu a compreensão particular de que choramos essas mortes, mesmo quando são muito previsíveis, porque, de algum modo, elas significam um pouco a morte da gente também. Ou são um prenúncio, um assovio nos nossos ouvidos a nos lembrar, sem dó, da passagem irremediável das coisas e de nós mesmos.
São mortes doídas, porque, além de atingirem pessoas queridas, reafirmam a nossa finitude e a de todos que a gente ama.
Foi como eu me senti ao receber a notícia da morte do seu Villas. Pra quem não teve como eu a alegria de ter convivido e aprendido com ele por um longo tempo no “Jornal do Brasil”, ou, mais ainda, por todos os dias, ou quase, daquele longo tempo, e por isso não pôde chamá-lo assim, de seu Villas, ou apenas de Villas, como ele preferia, enfim, pra quem não recebeu essa chance, explico que falo do jornalista Villas-Bôas Corrêa, o craque da análise política, o cidadão democrata, o homem apaixonado por música brasileira e futebol, o imenso conhecedor dos maiores acontecimentos da História do século XX, não só por estudá-la, mas, sobretudo, por ter ajudado a escrevê-la.
Falo do pai do também genial jornalista Marcos e do querido professor Marcelo, ele, o Marcelo, um dos fundadores do ensino médio do Ceat, nascido no Rio de Janeiro em 1983 da demissão coletiva de dez professores e um coordenador do Colégio São Vicente, acusados de “comunistas”.
Falo do senhor esguio e de riso fácil, que tirava o relógio e o depositava sobre a mesa pra escrever. Falo do colunista que costumava cronometrar o tempo que levava pra terminar seu texto. Do observador das coisas da política e da vida, que dizia conceber sua coluna inteira enquanto caminhava no calçadão de manhã, antes de ir pro jornal.
A morte do seu Villas é um pouco a morte de nós todos que com ele convivemos na mitológica redação do sexto andar do velho JB, na Avenida Brasil 500, onde a gente, ainda tão jovem, olhava pra um lado e via o João Saldanha, virava-se pra outro e avistava o Sandro Moreyra, voltava a atenção pra mais uma direção e enxergava o Zózimo Barroso do Amaral, percebia um vulto passando em frente e era o Carlos Castelo Branco.
Porque, como numa manchete de antigamente, ela, a morte do seu Villas, grita o fim de um tempo.
Anuncia, ou só nos lembra, o fim de um tempo em que o jornalismo parecia ser melhor – e devia ser mesmo, ressalvada a mania renitente de gente como eu (e talvez como tenha sido o seu Villas) que teima em glorificar o passado.
Naquele velho JB, houve um período em que, às segundas-feiras, eu, ainda um moleque, munido de uma audácia certamente consentida, escrevia a coluna “Coisas das Política”. Numa daquelas segundas, depois de ler o meu texto na página 2, seu Villas pegou no meu braço e disse sem olhar pra mim: “Olha, o que você faz é crônica. Não perca nunca essa mão.” Não esqueci. Não vou esquecer.
A imagem que me vem no pensamento agora é a de vê-lo alto e digno, conversando com o Castelinho, o imenso Carlos Castelo Branco, outro mito daquela redação, defronte do aquário do filho Marcos Sá Corrêa, nosso editor-chefe – que, aliás, chefiava o próprio pai, inclusive.
Com suas orações longas e suas frases invertidas, com suas afirmações que, de tão simples, soavam rebuscadas ou sinuadas ou como poesia, com o seu jeito ocre de disfarçar as emoções do ofício diário, o seu Villas não caberia no jornalismo feito hoje.
Ou, e é mais provável, o jornalismo feito hoje já não caberia nele. Saudade pra sempre.
* * * *
Seu Villas morreu aos 93 anos de idade, nesta quinta-feira, 15 de dezembro de 2016, num leito do Hospital São Lucas, em Copacabana, onde estava internado desde a sexta anterior, com complicações pulmonares.
Pois é, Marceu, senti o mesmo. Eu que, em meus primeiros dias de jornalismo, tive o privilégio de sentar-me ao lado do Villas, lembro bem de sua presença inspiradora e generosa. O Villas será sempre um exemplo, mesmo que o jornalismo não caiba mais nele. bjs
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Jornalista digno numa época em que isso é raridade… Sentia muito orgulho de tê-lo por perto no JB. Enorme perda.
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Sabemos que a morte de Fidel, do time do chapecoense, de Dom Paulo e de Villas Boas abalaram todos nós, mas percebi que dos últimos 5 assuntos, 3 foram fúnebres, que fim de ano triste.
Oxalá que 2017 seja um ano só de alegrias do início ao fim.
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Se não bastasse Fidel, A Chapecoense, Gulag, Dom Paulo Arns e agora o Villas, oh mundo imperfeito!, por enquanto os canalhas, temporariamente ganham…
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emocionante, Marceu. Como sempre. Se solidariedade ajuda, divido com você este sentimento de perda.
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Fui aluna do Marcelo no CSVP, tava na vigília, assisti ao VIllas fazer todo mundo rir com seu comentário de que estava ali na qualidade de “pai de professor”….
Que texto bonito.
E que saudade me deu do velho JB, do qual sinto falta até hoje.
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